Há alguns meses escrevi um artigo sobre a banalidade do mal, conceito que ainda hoje reverbera sua atualidade, mesmo que nele enfiemos outras métricas e perspectivas. O reconhecimento da face torpe da condição humana, dadas certas circunstâncias, principalmente associadas à recusa do pensar, pode levar pessoas comuns a práticas desumanas, ou a se associarem com relativa facilidade às benesses conquistadas pelos algozes de ponta. Hannah Arendt indica o despojamento da faculdade de pensar e o esfacelamento do mundo comum, do espaço do agir e falar na esfera pública, este, inclusive, podendo ser desdobrado como consequência daquele, como a gênese do fascismo/nazismo. Lentamente cada espaço, cada célula vai sendo subsumida ao cálculo, ao fascínio dos encurtamentos políticos, esticados pela propaganda facínora de líderes e ideias que tornam os indivíduos massa indiscernível, aniquilando a condição singular. A barbárie é a radicalização desse processo.
O ponto fulcral da autora é tentar compreender, como ela mesma diz, compreender não é o mesmo que perdoar (devemos lembrar que Hannah Arendt era judia e precisou fugir da Alemanha), como pessoas comuns, “normais” são capazes de matar milhões de outros seres humanos a partir de uma lógica de extermínio produtivo e calculado.
Hoje desdobro a partir de um questionamento: e se a política da morte nazi-fascista tivesse vencido? Se a sanha da barbárie ocupasse cada centímetro das relações, instituições e afetos curvados sobre nossos corpos, sentiriam seus algozes e cúmplices algum desconforto em continuar empurrando milhares/milhões para o extermínio? Não podemos naturalizar a morte, banalizar práticas e ideias políticas alicerçadas no ódio e na desumanização. Também não podemos esquecer as marcas do Integralismo e as raízes autoritárias e cambiantes da nossa já nem tão jovem democracia; muito menos esquecer que há pouco mais de um ano, milhares de pessoas se aglutinavam na frente de quartéis para pedir “pacificamente” pelo fim da democracia, pelo direito a renunciar aos próprios direitos, desdobrando uma performance que ainda hoje encontra respaldo na nossa sociedade.
O ódio e a barbárie não são posições políticas, mas repercutem da anulação do espaço público, da ausência da política, e precisamos estar sempre atentos aos que em nome da família e dos bons costumes, geralmente, cavam seus tentáculos no tecido dirigível das massas. Nos ocupemos de pensar o quanto já não fomos conduzidos pelos meandros da banalização da vida e dos afetos. Como já nos alertou Walter Benjamin, “se perdermos, sequer os mortos estarão a salvo”.
E se tivessem vencido, de que lado estaríamos?
Autora: Marli Silveira
Acadêmica da Academia Rio-grandense de Letras Também escreveu e publicou no site ” A banalidade do mal”: www.neipies.com/a-banalidade-do-mal/
Edição: A. R.