As lutas educacionais não podem parar quando a própria civilização está sofrendo “os impulsos regressivos”. Em síntese, nosso grande desafio é “desbarbarizar a educação”.
Como ressalta Fernando Cassio (p.16-21) na apresentação do livro que nos propomos a resenhar, “as ameaças à educação brasileira exigem a nossa energia para pautar um debate público” que seja capaz de ultrapassar as simplificações superficiais e homogêneas de “discursos eficientistas do empresariado e de suas assessorias educacionais”. Tal energia é necessária para promover um processo de “luta por escolas públicas democráticas, inclusivas, laicas e com liberdade de ensinar”, a qual depende de nossa capacidade e “disposição para defender projetos educacionais radicalmente democráticos”. Em síntese, nosso grande desafio é “desbarbarizar a educação” (p.15).
A coletânea Educação contra a Barbárie, lançada em 2019 pela editora Boi Tempo, organizada por Fernando Cássio (doutor em ciências pela USP e professor da UFABC) e com o prefácio de Fernando Haddad (ex-ministro da educação no período de 2005-2012, prefeito de São Paulo de 2013-2016 e candidato à presidência da República pelo PT em 2018), é composta por um conjunto de reflexões de autores e autoras que “não tem medo de dizer quem são os inimigos da educação no Brasil, de defender a educação como um projeto coletivo e de se contrapor às agendas educacionais ultraliberais, ultraconservadoras e reacionárias” (p.16).
A coletânea, composta de 26 ensaios, está organizada em três partes: na Parte I, intitulada de “A barbárie gerencial”, “desafia a mesmice dos discursos de assessorias, movimentos, institutos e fundações educacionais do empresariado brasileiro”, mostrando “o embuste das agendas educacionais empresariais, cada vez mais capilarizadas e indistinguíveis das políticas educacionais oficiais”.
Trata-se de um processo visível de “aniquilamento da educação como bem público”. Trata-se de uma barbárie gerencial que tenta destruir as escolas de fora para dentro (p.17); na Parte II, que tem por título “A barbárie total”, o conjunto dos textos examinam o projeto em curso que visa “arruinar as escolas a partir de dentro”, por meio da intimidação e perseguição ao professorado, pelo “negacionismo científico”, pela “militarização das escolas públicas”, pelo “desprezo ao conhecimento”, onde impera a “violência como currículo” e o “ódio como pedagogia”(p.18-19); na Parte III, intitulada “Educação contra a barbárie”, os ensaios tratam da “da disputa da escola e a retomada da pedagogia” como ferramenta para discutir as escolas coletivamente (p.19-20).
Não vou comentar aqui todos os ensaios que compõe a coletânea; apenas vou expor brevemente o teor de cada uma das três partes com o intuito de criar interesses nos leitores.
No primeiro ensaio da Parte I, intitulado “Contra barbárie, o direito à educação”, o educador e cientista político Daniel Cara, defende que “o direito à educação é, em um sentido geral e por consequência, o direito de todas as pessoas se apropriarem da cultura” como parte “essencial da condição humana” e como “uma necessidade para o pleno usufruto da vida” (p.26). Tal direito é ameaçado quando “as políticas educacionais das forças hegemônicas têm reduzido a educação a um insumo econômico ou a uma estratégia disciplinadora doutrinária” resultantes das “ações ultraliberais e dos ultrarreacionários” que tomaram recentemente o poder (p.27).
A segunda parte da coletânea, intitulada “A barbárie total”, é composta por um conjunto de nove ensaios. O primeiro deles, de autoria de Bianca Correa, “Educação na primeira infância: direito público x capital humano”, tece uma abordagem sobre o discurso que projeta a imagem das crianças como seres meramente biológicos, sob janelas de oportunidades exploradas de forma mercantil. Segundo Correa, essa lógica coloca as mulheres como protagonistas de um papel que no passado era tratado como dever materno e atualmente, diante de um jogo de interesses mercantis, projeta-se como um dever afetivo e econômico que chega a soar como uma chantagem emocional.
A terceira parte da coletânea inicia com o ensaio “Escola e afetos: um elogio da raiva e da revolta”, de autoria de Rodrigo Ratier, jornalista e doutor em educação pela USP. Para o autor, o foco “excessivo na dimensão racional, típica das sociedades ocidentais, varreu para detrás das cortinas a atuação dos sentimentos” (p. 152). No campo da educação, com a BNCC, há um retorno da abordagem dos sentimentos, porém, agora, como “competências socioemocionais”.
Ratier pondera que “falar de afetos e emoções na educação não significa, necessariamente, falar de competências socioemocionais” (p. 153). Por mais que se diga que a BNCC não é currículo, a curto prazo emerge um enorme desafio: “como trabalhar as tais habilidades socioemocionais se o tema não faz parte da formação inicial [dos professores] e, até recentemente, da capacitação em serviço?” (p. 153).
De acordo com o autor, apresentam-se dois caminhos. O primeiro que é a atuação intuitiva dos professores, que segundo algumas pesquisas, se baseia em recompensar o aluno pelo seu comportamento. O segundo remete as soluções pedagógicas do mercado editorial que promete com seus materiais didáticos resolver as dificuldades da escola com relação às emoções; o problema desses dois caminhos é o controle das emoções por obediência e comandos que vem de outras pessoas. Essa perspectiva de docilização do sujeito elimina as palavras “raiva”, “indignação” e “cólera”.
Ratier afirma com base em Paulo Freire, que a “escola transformadora não suprime a rebeldia e nem a condena”, ao contrário, “busca canalizar o rancor destrutivo para o questionamento das injustiças”. “A raiva e a rebelião são entendidas como parte do processo para a formação de indivíduos autônomos, capazes de crítica e reflexão” (p. 156). O autor conclui o ensaio com uma pertinente declaração do filósofo iluminista Condorcet: “a verdadeira educação faz cidadãos indóceis e difíceis de governar” (p. 157).
Uma análise conjunta dos ensaios que compõe a coletânea possibilita afirmar que se trata de uma competente reflexão sobre os distintos temas e problemas que envolvem a educação na contemporaneidade e sua leitura promove um juízo crítico sobre o rumo da que está em curso no Brasil. Uma leitura dos distintos ensaios possibilita problematizar o que vem sendo anunciado pela tomada de decisão de quem está governando o país, bem como compreender a atuação dos diversos atores que estão em cena neste contexto. Desejamos uma boa leitura a todos.
Além da obra organizada por Fernando Cássio, cuja referência completa está abaixo, indico o artigo “Que Auschwitz não se repita: quando a barbárie ronda o cotidiano” que escrevi em parceria com meu grande amigo Ricardo Cocco, egresso do doutorado do PPGEdu da UPF.
Segue o link de acesso:
Referências:
CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.
COCCO, Ricardo; FÁVERO, Altair Alberto. Que Auschwitz não se repita: quando a barbárie ronda o cotidiano. Revista Debates Insubmissos, Caruaru, PE, Brasil, ano 5, v.5, n. 16, jan./abr, 2022, p.12-33.
Autor: Altair Alberto Fávero. Também escreveu e publicou no site “Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal”: www.neipies.com/educar-para-humanizar-e-resistir-a-racionalidade-neoliberal/
Edição: A. R.
Reflexão pertinente, alinhada com os desafios atuais.
Muito bom testo.