Educação e Violência da Positividade

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Na violência da positividade não existe um inimigo externo, pois “a falta de negatividade da inimizade faz com que a guerra se dirija contra si mesmo”, ou seja, “quem destrói, será destruído”; “quem golpeia, será golpeado”; “quem vence, perde por sua vez.” (Han, 2016, p. 141).

Violência é um dos temas recorrentes, não apenas no campo da educação e da filosofia, mas de diversas áreas de estudo, como saúde, antropologia, sociologia, direito, biologia, psicologia, e a lista poderia ser imensa. A violência é algo presente, cotidiano, que invade nossa vida pessoal e coletiva das mais diversas formas. Enquanto fenômeno antropológico, é constitutiva do humano, da forma como nos relacionamos e na construção de nossa própria imagem de pessoa. Pensadores da envergadura de Nietzsche, Freud e Hobbes nos ensinaram que a violência se apresenta como um “constitutivo primordial”, pois faz parte do mais íntimo dos impulsos humanos.

Um olhar mais cuidadoso sobre o fenômeno da violência nos ajuda a compreender que ela se distingue da agressividade.

Os estudos dos biólogos e etólogos “[…] dizem que o animal que não fosse dotado de um mínimo de agressividade não sobreviveria em nosso mundo” e que “a agressividade básica está na raiz do chamado instinto de sobrevivência, que demove o animal a buscar alimento, água, segurança” (Morais, 1995, p. 20). Violência e agressividade, portanto, não são a mesma coisa, pois enquanto esta se apresenta como um dispositivo biológico de sobrevivência, aquela é própria dos seres humanos. Há quase meio século, o filósofo Jean-Marie Domenach e seus colaboradores já ressaltavam em seus estudos que “[…] foi violentamente que o homem dominou a terra e continua a ocupá-la. A vida é violência, o Estado é uma violência organizada, o pensamento é violência.” (Domenach, 1969, p. 21). 

O mundo, portanto, não está dividido entre violentos e não violentos, mas entre os que realizam e praticam efetivamente a violência contra os outros e os que tendo consciência de sua condição existencial lutam permanentemente para reduzir a violência a um mínimo possível.

Sobre esse aspecto, tem razão Morais (1995, p. 21) quando diz que “[…] se nos pusermos em campanhas contra a violência, em nome de uma não-violência fantasiosa, sem que consideremos firmemente a condição paradoxal [do ser humano], pouco alcançaremos além de um moralismo frágil cujos contornos indefinidos derivam da perda da opção dialética da vida.”

Há uma violência “velada”, escondida, “camuflada” que precisa ser compreendida na forma como ela se faz presente na própria existência de cada indivíduo e nos múltiplos relacionamentos sociais do cotidiano. No ensaio Topología de la violencia o filósofo coreano Byung-Chul Han (2016) faz uma instigante e provocativa análise dos diversos lugares em que a violência se manifesta. Dividido em duas partes, o ensaio de Han descreve as metamorfoses da violência e indica que há uma distinção entre violência da negatividade e violência da positividade.

Segundo Han (2016, p. 10), “[…] a sociedade atual evita cada vez mais a negatividade do outro ou do estrangeiro”, provocando o desaparecimento gradual das fronteiras e das diferenças. No entanto, “a supressão da negatividade não se pode equiparar com a desaparição da violência, pois junto à violência da negatividade existe também a violência da positividade, que se exercita sem necessidade de inimigos nem de dominação.” Esta se faz presente na “massificação do positivo”, que se manifesta como excesso de capacidade, excesso de produção, excesso de comunicação, hiperatenção e hiperatividade. “A violência da positividade”, ressalta Han (2016, p. 10-11), “possivelmente seja mais danosa que a violência da negatividade, pois carece de visibilidade e publicidade, e sua positividade faz com que não haja defesas imunológicas.”

No capítulo dedicado à Violência da positividade, Han (2016, p. 137) ressalta que “[…] o desmoronamento da negatividade faz com que surja um excesso de positividade, de promiscuidade generalizada, de consumo, de comunicação, de informação e produção.” A massificação do positivo congestiona e obstrui a circulação, causando um infarto no sistema, em que “[…] a informação já não é informativa, a produção já não é produtiva, a comunicação já não é comunicativa.”

Valendo-se dos escritos e reflexões de Baudrillard, Han (2016, p. 138) denuncia que “[…] o espaço ascético da positividade, ao ter eliminado o efeito de toda negatividade imunológica do outro, desenvolve novas formas de viralidade, uma nova patologia.” Com isso, ele ressalta que a época contemporânea não é mais “uma época viral”, pois “[…] as enfermidades principais não são infecções virais ou bacterianas, mas sim são enfermidades psíquicas como o burnout, a hiperatividade ou a depressão, que não se remetem a negatividade viral, senão ao excesso de positividade, a violência da positividade.” (Han, 2016, p. 140).

Na violência da positividade não existe um inimigo externo, pois “a falta de negatividade da inimizade faz com que a guerra se dirija contra si mesmo”, ou seja, “quem destrói, será destruído”; “quem golpeia, será golpeado”; “quem vence, perde por sua vez.” (Han, 2016, p. 141).

Trata-se, portanto, de uma guerra em que nada se pode ganhar, onde não há vencedor. A violência da positividade é “implosiva”, diferente da violência da negatividade, que é “explosiva”. Enquanto “a violência explosiva exerce uma pressão que vem de fora”, a violência implosiva exerce uma pressão de dentro “que causa tensões e impulsos destrutivos”; “o bournout do sujeito de rendimentos é um signo da ameaça de implosão do sistema.” (Han, 2016, p. 142). “A erosão do social cada vez maior”, da sociedade contemporânea, acaba produzindo “egos ilhados encerrados em si mesmo.” Para Han (2016, p. 144, grifo do autor), “[…] muito mais perigoso que o terror do outro é o terror de si mesmo, o terror da imanência”, pois “[…] já não é possível defender-se com eficácia deste porque já não há negatividade.”

Referências:

DOMENACH, J. M. et al. A violência.Rio de Janeiro: Laudes, 1969.

FÁVERO, A. A.; TONIETO, C. Educar o educador: reflexões sobre formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

HAN, B.-C. Topología de la violencia. Barcelona: Herder, 2016.

MORAIS, R. de. Violência e educação.Campinas: Papirus, 1995.

Autor: Altair Alberto Fávero. Professor e Pesquisador do PPGEdu/UPF – altairfavero@gmail.com também escreveu e publicou no site a reflexão “Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal”: www.neipies.com/educar-para-humanizar-e-resistir-a-racionalidade-neoliberal/

Edição: A. R.

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito interessante o texto professor Altair, vou colocar essa obra de Han na minha lista. É um autor que com certeza tem muito a contribuir para a educação dos nossos tempos. Lembrei também de outro livro excelente, o “Happycracia: Fabricando cidadãos felizes”, que trata da violência velada de um mundo de excessos da positividade (e sua lógica neoliberal e individualizante).

    • Gratidão Gabriele pelo seu comentário. De fato Han nos ajuda a pensar mais longe. Vou separar o Happycracia que não li ainda.

  2. Excelente reflexão nesses tempos, Professor Altair. Estudamos hoje pela manhã Sociedade do cansaço Segundo capítulo, no Grupo Biosofia. É nossa vida que se consome.

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