Educação profissional e reforma do ensino médio: flexibilização irresponsável

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A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. (…). Assim, pois, a essência da técnica também não é, de modo algum, algo técnico. Mas, de modo mais triste, estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro”. (Martin Heidegger – A questão da técnica)

A simplificação da formação técnica e qualificação profissional prevista como quinto itinerário da reforma do ensino médio é como a ideologia da meritocracia: não entregará o que propõe e promete aos jovens estudantes.

A era da meritocracia contribuiu na deterioração da dignidade do trabalho enquanto criador de vida. Trabalho é tanto econômico quanto cultural. Ao induzirmos os jovens nesta lógica mercadológica estamos corrompendo os jovens e deseducando-os, além de induzir ao sofrimento emocional e material.

Seria um absurdo colocar em dúvida a importância da preparação profissional nos objetivos das escolas e das universidades. Mas a tarefa da educação, especialmente da educação básica, pode realmente ser reduzida à formação de técnica e qualificação profissional?

Priorizar exclusivamente a profissionalização dos estudantes, como a reforma do ensino médio está priorizando, significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação.

A dimensão que para o filósofo Nuccio Ordine (Universidade Calábria, Itália) concebe que nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estejam subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os jovens a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiositas.

Bolsa-formação

A técnica moderna somente entrou em curso quando ela pode apoiar-se sobre a ciência exata da natureza. O início da ciência moderna remonta ao século 17 enquanto a técnica das máquinas de força somente se desenvolve na segunda metade do século 18.

Para Martin Heidegger, a determinação somente instrumental da técnica se torna ilusória, gerando uma aparência enganadora de que a técnica moderna é uma ciência da natureza aplicada.

Um conjunto de atos regulatórios do MEC que entrou em vigor nos últimos meses amplia e reforça esta dissociação entre a formação e qualificação profissional das diversas ciências, fragmentando a oferta da educação profissional e configurando uma flexibilização irresponsável na formação dos estudantes brasileiros na educação básica, especialmente no ensino médio.

Sem uma política pública de Estado para a educação profissional e o descumprimento das metas do PNE 2014-2024 de “triplicar as matrículas da educação profissional” e ampliar a oferta integrada da EJA com essa modalidade de ensino, o MEC publica a Portaria nº 359/2022 em 1° junho e, que entrou em vigor em julho, autorizando o fomento de cursos de qualificação profissional via Bolsa-Formação, modalidade do Pronatec criado em 2011.

Durante o Pronatec, o Sistema S foi responsável por 88,6% das matrículas nesta modalidade de Cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) conforme comprovado na tese de Neila Drabach (IFRS).

Esta portaria permite, na prática, que a carga horária mínima de 1.200 horas prevista na lei 13.415/2017 que reformou o ensino médio seja cumprida através do quinto itinerário de formação técnica e qualificação profissional.

O objetivo central da portaria é justamente “autorizar o fomento, por meio da Bolsa-Formação, de cursos de qualificação profissional com certificações, a partir de saídas intermediárias que compõem itinerários formativos dos Cursos Técnicos do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (CNCT)”, ou seja, amarra os cursos às saídas intermediárias do Cadastro Nacional de Cursos Técnicos (CNCT) e não mais à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).

Flexibilização e negação

O mais grave é o que prevê No Art. 2º que “os cursos de que trata o art. 1º podem ser fomentados de forma desvinculada dos cursos técnicos correspondentes e caberá à instituição de ensino indicar o curso técnico correspondente ao curso de qualificação profissional, para fins de cálculo da carga horária mínima”.

Essa flexibilização permite que mantenedoras públicas e privadas desenvolvam 40% do currículo do novo ensino médio com cursos de qualificação sem comporem um Curso Técnico e, pior, os vincula a qualquer Curso Técnico, descaracterizando Planos de Cursos, Projetos Pedagógicos das Escolas e a própria CBO.

Qual a implicação desta flexibilização? Tanto os Cursos Técnicos podem ser descaracterizados como o ensino médio, através do quinto itinerário, tornando-se um Frankenstein sem identidade e unidade epistemológica, pedagógica e formativa.

Trata-se de institucionalizar uma concepção fragmentada de formação sem uma concepção homogênea de currículo. E, inclusive, trata-se de uma negação de um currículo escolar e acadêmico.

A outra normativa é uma Portaria de n° 314 publicada em 03 maio de 2022 que amplia critérios para Instituições Privadas de Ensino Superior (IPES) se habilitem para ofertar cursos técnicos de nível médio.

O que muda, segundo MEC, é que a portaria facilita especialmente a ampliação dos cursos técnicos à distância (EAD).

Enquanto a portaria anterior previa a necessidade de apresentação de um pedido para cada endereço e polo, agora basta um único pedido que será estendido aos demais campus e polos.

Esta medida, também, amplia para as IPES a oferta de qualificação profissional via bolsa-formação – incialmente autorizado somente para instituições públicas federais, estaduais e municipais e o sistema S – e, dialoga com a reforma do novo ensino médio que permitiu que 30% do currículo seja cumprido à distância.

Um exemplo concreto já em vigor é o Convênio no valor de R$ 38 milhões firmado entre o governo do Paraná e a Unicesumar, faculdade privada, para oferta de aulas a distância para estudantes da rede estadual que optaram pelo quinto itinerário.

O estado do Rio de Janeiro, também, já firmou cooperação com o Sistema S (Senai). No caso do Paraná os estudantes já protestam e denunciam da falta de qualidade do que lhes é propiciado por esta faculdade.

Cabe destacar que entre as IPES temos Universidades Públicas, Comunitárias e Particulares de qualificados serviços de ensino, pesquisa e extensão, com conceitos altos na avaliação do MEC.

Porém, a grande maioria das Instituições de Ensino Superior (IES) são faculdades, algumas com conceitos 3 (mínimo para funcionar) e tantas outras com conceitos insuficientes (1 e 2).

Isso se agrava quando, nos sistemas estaduais e municipais de ensino, não há avaliação da qualidade dos cursos técnicos e muito menos dos cursos de qualificação ofertados por instituições meramente com fins lucrativos e que poderão compor o novo ensino médio.

Cabe, ainda, destacar que a capacidade de uma IPES para oferta de ensino superior não se transpõe automaticamente para a oferta de cursos técnicos de nível médio.

Os cursos técnicos não se resumem a apenas estrutura física, laboratórios, sala de aula e professor qualificado. Requer-se um projeto político-pedagógico, Plano de Curso, metodologias e estratégias apropriadas para trabalhar com jovens-adolescentes (14 a 17 anos), condição diferente da formação com jovens e adultos que são desenvolvidas no ensino superior.

Neste vale-tudo, a Resolução CNE/CP Nº 1, de 06 de maio 2022, “entrando já em vigor em 1 de junho deste mês, ou seja, 22 dias após sua promulgação. Uma aceleração e pressa injustificável, inaplicável e suspeita.

Notório saber

A professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise Ramos, em entrevista concedida em maio, após a publicação da resolução (Revista Poli, nº 84, julho/agosto 2022), argumentou que o que as novas diretrizes fazem é “não deixar nada fora da lei”, prevendo todas as possibilidades de formação que já existem, como: cursos de graduação de licenciatura, cursos de especialização lato sensu em docência na educação profissional, programas especiais de formação, de caráter excepcional, e cursos destinados à formação pedagógica para licenciatura de graduados não licenciados, mais “outras formas, em consonância com a legislação”, incluindo uma formação em serviço a ser propiciada pela instituição a profissionais com o denominado “notório saber”.

Na verdade, para a pesquisadora, a partir desta resolução, todos os cursos de habilitação docente podem, até mesmo não existir, porque tudo pode ficar na base do reconhecimento do “notório saber”. Diga-se de passagem, notório saber não disciplinado, apenas exigindo que a instituição apresente um plano de habilitação ao órgão supervisor do respectivo sistema de ensino.

No artigo 2º, a resolução prevê que os cursos e programas devem ser organizados por Habilitação Profissional ou, de modo mais abrangente, por Eixo ou Área Tecnológica. “É uma restrição absurda. Então você vai se formar como um professor da sua habilitação específica, por exemplo, dentro da gerência em saúde, sem ter uma formação na área da saúde como um todo?”, critica Ramos.

Nesta perspectiva, o professor não é mais um sujeito formado em uma área que, em razão dessa formação, se torna habilitado a ensinar. Ele é alguém que se forma para somente para ensinar.

Formação científica e humanista

Muitas análises anteriores já destacaram que o quinto itinerário técnico e de qualificação profissional apresenta o mais grave risco de precarização na formação dos estudantes do ensino médio brasileiro.

Nele a formação técnica e profissional pode ser ofertada tanto a habilitação profissional técnica quanto a qualificação profissional, por meio de cursos básicos, incluindo-se o programa de aprendizagem profissional em ambas as ofertas, com possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação profissional técnica; podem compreender a oferta de um ou mais cursos de qualificação profissional, desde que contemplem programa de aprendizagem profissional, desenvolvido em parceria com as empresas empregadoras, incluindo fase prática em ambiente real de trabalho no setor produtivo ou em ambientes simulados.

Na educação básica brasileira, as melhores experiências de formação técnica estão nos Institutos Federais (IFs), Escola Politécnica da Fiocruz do RJ, CEFETs, Fundação Escola Técnica Liberato de Novo Hamburgo/RS, Escolas Estaduais e Escolas Agrícolas com Ensino Médio Integrado, nos Cursos Técnicos do Sistema S, entre outras.

Currículos

Esses currículos, além de integrarem formação básica geral e técnica, se alicerçam numa concepção mais ampla de educação tecnológica, sob sólida formação científica e humanista, com projetos político-pedagógicos robusto, pesquisa e trabalho como princípios pedagógicos, com uma média de 4.500 horas-aula.

Agora, a BNCC, a reforma do ensino médio e o conjunto desses últimos atos do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do MEC promovem um reducionismo curricular extremo de 1.800 horas de Formação Geral Básica (FGB), mais 1.200 horas de qualquer coisa de qualificação profissional, por qualquer profissional que tiver o tal de “notório saber” reconhecido, para jovens trabalhadores que necessitam de uma ampla e sólida formação em tempos tão complexos e exigentes.

Este “novo ensino médio”, para Gaudêncio Frigotto (UERJ), é uma traição à juventude que frequenta a escola pública, pois o que lhes oferece é “um pastel de vento” que acaba com o sentido de uma educação básica a qual supõe um equilíbrio entre as disciplinas que permitem entender as leis da natureza (química, física, biologia) e as que permitem entender e atuar nas relações sociais (história, sociologia, filosofia, literatura, arte, etc.).

O que se prioriza são conhecimentos instrumentais, mas que sem o que é básico instrumentaliza o “vento”. Liquida-se o esforço de décadas para superar, pelo ensino médio integrado, a dualidade estrutural: educação geral para a “elite” e adestramento profissional para o povo.

*Esta publicação foi originalmente publicada no Jornal do SINPRO-RS, Extra Classe: https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2022/08/educacao-profissional-e-reforma-do-ensino-medio-flexibilizacao-irresponsavel/

Autor: Gabriel Grabowski

Edição: Alexsandro Rosset

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