Cumpre a todos aqueles que não desistiram dos ideais utópicos da igualdade resgatar a força da política, dando novas energias e nova vitalidade ao processo democrático e às lutas pela igualdade.
Viktor Orban ganhou as eleições na Hungria. Aqui, Jair M. Bolsonaro firma um campo político que pode viabilizá-lo como um candidato forte num segundo turno, logo depois da vitória de Gabriel Boric no Chile. O processo eleitoral é um momento decisivo na disputa pela hegemonia na sociedade liberal-democrática, pois a informação visual instantânea – predominante nestes processos – se apresenta como uma espécie de “história em marcha”, dentro da qual, em cada episódio da disputa hegemônica, o “visual” é uma forma simplificada de explicação.
A partir da informação visual – com telegráficas mensagens de ódio em sequência –, o acontecimento pode ser apresentado como “único”, com ou sem conexões com o passado. Através dele, a história pode aparecer como pura cotidianidade: História fixa onde o espectador passivo pode frui-la sem qualquer compromisso com o conhecimento do presente.
A produção da informação em redes, desta forma, facilita a criação de mentes sem memória, como se a vida fosse um “presente perpétuo” instável, mas sempre acompanhada pelo olhar.
Nesta perspectiva, o viver não é uma sequência da história, logo com origens e consequências, mas um fluxo de momentos sem hierarquia e sem valores: a memória é sufocada pelas infinitas superposições de outros novos fatos, igualmente desconectados entre si, igualmente “descartáveis” e igualmente vinculados ao presente do mercado, onde se sucedem “estabilidade” e anarquia. Assim, o presente é tendencialmente apropriado como se futuro fosse e é, em consequência, a verdade aceitável.
O enigma neste início de século de destruição da sociedade burguesa clássica é se a mera demarcação (não a ausência de demarcação, mas a mera demarcação) é capaz de produzir políticas capacitadas para enfrentar os efeitos da emergência fascista. No Chile, isso ocorreu, mas por fora do sistema partidário da democracia liberal.
No imaginário das pessoas comuns, em regra, a destruição deste presente é sempre uma destruição em que os fatos perturbadores da vida comum são sempre “vistos” como contrários à (falsa) segurança e estabilidade que já temos. No Chile, mobilizado pelas mulheres em luta, os jovens, os de “fora” do mercado suntuário, os famintos de todas as ordens superaram esta contradição e fizeram vencer a indeterminação criadora.
A esquerda nascida dos movimentos no Chile passou a levar em conta que as fronteiras entre as classes também já não eram mais demarcadas como antigamente, logo a forma de apreensão da realidade social pelos indivíduos não era mais a mesma.
A exclusão e a precariedade – de um lado – e, de outro lado, também as classes empresariais, já não estavam (e não estão) mais alicerçadas na ideologia burguesa “clássica”. O seu manto fáustico-produtivista foi dissolvido e nelas restam só resíduos ideológicos da implantação da nação construída nos mercados locais, já desagregados pelo poder global do “capital-dinheiro”.
A ausência de fronteiras nítidas e definidas entre as classes, do ponto de vista cultural e existencial, não significa, todavia, uma maior proximidade entre elas. Significa uma maior fragmentação na totalidade social, que não só desconstituiu os valores tradicionais que as unificavam e as contrapunham, mas também determinou que, em vez delas se aproximarem pela contradição negociada, passassem a afastar-se na sua recíproca diluição.
A incerteza também confere uma instabilidade extraordinária aos setores privilegiados dentro do sistema, associados aos destinos do capital-dinheiro: a ironia é que, se eles têm força suficiente para criar as crises que eles mesmos fruem, eles também têm cada vez menos controle sobre o seu destino nacional.
Neste contexto, a demarcação exclusiva fixa campos políticos irremovíveis, no qual o fascismo se reproduz, mas a concepção que pauta a luta pela hegemonia cria “zonas de compromisso”, que obstruem o extremismo assassino do fascismo.
Os projetos do período “clássico” de democratização republicana pela demarcação tradicional apoiava-se em identidades hoje desorganizadas que, na sua relação social cotidiana, estão cada vez mais informadas pela violência (fora da política) ou por micro negociações corporativas.
A disputa pela hegemonia na sociedade, como consequência, secundariza as ações demarcatórias e torna predominantes as ações que orientem os indivíduos e os grupos sociais – mais além das ideologias – com projetos políticos que combatam a incerteza. O agrupamento em torno de determinadas ideias-força, que tenham mais caráter constitutivo e menos conteúdos demarcatórios, passa a ser fundamental para a produção de um novo imaginário emancipatório.
Gramsci, à sua época, já criticava o “denuncismo” – forma tradicional de “demarcação” –, cuja “atividade crítica reduzia-se a desvendar truques, a suscitar escândalos, a vasculhar a vida privada de homens representativos”, inclusive esquecendo uma outra proposição da filosofia da “práxis”, a saber, que as “crenças populares”, ou as crenças do tipo daquelas, têm a validade de forças materiais”.[1]
Não é gratuito que a imprensa tradicional adote sempre um “denuncismo” generalizado e, ao mesmo tempo, recuse-se a reconhecer a existência de alternativas de fundo ao neoliberalismo.
Cumpre a todos aqueles que não desistiram dos ideais utópicos da igualdade resgatar a força da política, dando novas energias e nova vitalidade ao processo democrático e às lutas pela igualdade.
A renovação reacionária do liberalismo (Wallerstein)[2]na era digital-informática; a revolução microeletrônica; a revolução das comunicações e da informação; o surgimento de milhares de novas profissões de vanguarda; o novo lazer individualizado nos “games” e a quebra das identidades nacionais, são algumas das mudanças que produzem uma nova e diluída socialidade, no dizer de Frederic Jameson, com a sublimação histérica do presente.[3]
Os excluídos do conhecimento tecnológico revolucionário, os alienados da informação sem hierarquia quanto aos valores humanos, os “sem” perspectiva de pão, terra, afeto, teto e convívio, lançados à marginalização e ao desemprego, à horizontalização, intermitência e à precariedade, vêm dissolvendo os padrões éticos e a moral do trabalho que formava a identidade operária e o sentido da revolução. Isso mudou a vida política, mas pode impulsionar uma esquerda que afirme os valores da igualdade do velho sujeito revolucionário, junto com as práticas de radicalização democrática dos novos movimentos e das classes trabalhadoras tradicionais: as velhas classes estão definhando na nova genética do capital, assim como os valores iluministas estão se prostrando pela emergência do fascismo.
Nestas eleições tudo isso estará em disputa, como esteve no Chile de Pinochet e na Hungria de Viktor Orban. No Chile de Allende, ganhamos. Na Hungria de Lukács, perdemos. No Brasil, venceremos.[4]
Notas
[1] GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, vol. I, p. 310.
[2] WALLERSTEIN, Immanuel. Após o Liberalismo – Em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes, 2002, p.23.
[3] ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 67-68.
[4] Este texto é inspirado no que foi publicado na revista Teoria e Debate nº. 53.
*Esta publicação foi originalmente publicada em 06/04/2022 no site A terra é redonda. Segue link: https://aterraeredonda.com.br/eleicoes-atipicas/
Autor: Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
Edição: Alex Rosset