A presença dos princípios neoliberais ocorrida nas últimas duas décadas fez com que a educação para o pensar perdesse sua força e cedesse espaço para outras formas instrumentais de organizar o trabalho escolar. Por conta disso, temos o retorno de um neotecnicismo que está mais preocupado em formatar jovens e crianças do que promover o pensamento crítico, criativo e cuidadoso.
O termo filosofia, em nossos dias, é concebido como sendo um conceito extremamente amplo e polissêmico. Fala-se que tal empresa possui tal “filosofia”; que fulano tem uma excelente “filosofia” de trabalho; que a cultura X tem uma “filosofia” de vida formidável; que o novo gerente, ao assumir a empresa Y, implantou uma “filosofia” radical; ou de que a “filosofia” da escola Z visa a tais e tais princípios. Se observarmos todos esses conceitos, parece que “filosofia” tem a ver com uma concepção e, pois, com um “saber de direção que Gramsci (1987, p.11-12) chama de “filosofia espontânea”, “senso comum”, ou “concepção de mundo”. Maura Iglésias (1996, p.11-16), no texto “O que é filosofia e para que serve”, além desse primeiro sentido, destaca outros dois, a saber, a filosofia oriental e a filosofia como disciplina acadêmica.
Se o simples conceito de filosofia provoca essa ampla possibilidade de interpretações e reflexões, o que dizer do ensino de filosofia? A filosofia é possível de ser ensinada? Que conteúdos são próprios da filosofia? Há um tempo e um espaço para a filosofia? Ela precisa ser tratada como disciplina na formação de nossos alunos? É possível ensinar filosofia para as crianças? Ao implantar filosofia nas escolas, não estaríamos comprometendo a própria identidade da filosofia? Como deve ser a formação do professor de filosofia? Kant teria razão quando afirmou que não se ensina filosofia, ensina-se a filosofar? Não pretendemos tratar neste texto todas essas questões. Apenas intencionamos abordar algumas reflexões em torno do ensino da filosofia, num cenário marcado por formas de vida declaradamente mercantis que dão pouco espaço para o pensamento filosófico.
Quando se fala em ensino de filosofia, imediatamente surgem três questões: ensinar o quê? Ensinar para quê? Como ensinar?
Tais perguntas refletem um “espírito” pragmatista‑utilitário presente em nossa época. Uma civilização marcada pela mentalidade técnico-instrumental dificilmente consegue perceber a. importância da filosofia no mundo de hoje. Nossa sociedade e nossa cultura costumam considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata.
Existem muitos preconceitos com relação à filosofia. É lugar-comum ouvirmos expressões de todo tipo que evidenciam uma certa ignorância ou até um determindado tipo de medo da filosofia: “a filosofia é a ciência pela qual ou sem a qual continua tudo igual” proclama quem nunca leu algo sobre filosofia; “a filosofia é um saber especulativo inútil, que em nada contribui com a ciência e o conhecimento” exclamam os infectados pela mentalidade mercantil que tomou conta da vida; “a filosofia é própria dos esquerdista/comunistas que querem dominar ideologicamente a sociedade”, esbravejam os defensores da extrema direita que se sentem ameaçados pelos seus opositores que lutam pelos direitos humanos; “a filosofia não produz desenvolvimento econômico e provoca crises na organização da sociedade”, sentenciam os donos do poder e da riqueza.
Grande parte dos alunos universitários, ao ingressarem na universidade, são portadores desses preconceitos com relação à filosofia. Os poucos que tiveram experiência no ensino médio vêem a filosofiacom desprezo e a maioria deles são incapazes de captar a preciosa contribuição que ela pode dar para um pensar melhor e, por consequência, para um agir responsável, cuidadoso e prudente. Karl Jaspers (1975, p. 139), em seu livro Introdução ao pensamento filosófico, define com propriedade a situação em que se encontra a filosofia: “A filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. […] Ela é considerada perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente”.
Grande parte dessa situação em que se encontra a filosofia deve‑se à maneira como as pessoas têm acesso a ela, pela maneira como é ensinada nas escolas, ou por nunca terem acessado de forma consistente conteúdos filosóficos na sua trajetória de vida. No que diz respeito ao seu ensino, poderíamos distinguir duas posições de como ela pode ser compreendida: como resposta ou produto e como pergunta ou processo.
A filosofia como resposta ou produto é identificada com a aquisição de um saber pronto, assimilado de maneira memorística e retórica: os alunos são induzidos à memorização de conceitos e doutrinas escritas pelos pensadores ao longo do tempo. A erudição filosófica é assumida como um fim em si mesmo. Encarado dessa forma, o ensino de filosofia se reduz à mera aquisição de um produto pronto e inquestionável. Talvez por isso os alunos tenham dificuldade de compreender a importância da filosofia. Infelizmente, é dessa maneira que a filosofia é compreendida pela maioria das pessoas. Trata‑se de um saber acadêmico, formal, que não abre espaços para uma dimensão construtiva e crítica.
Já a filosofia como pergunta ou processo, sem negar ou contestar a validade da postura anterior, ressalta outro ângulo; trabalha com a perspectiva de “aprender a pensar”. Tal perspectiva é entendido não como a capacitação lógica, como domínio do uso de um instrumentoque ordena o pensamento, mas como o desenvolvimento da capacidade de questionar, de rejeitar como dado inequívoco e evidência o que se apresenta de modo imediato, que convence de forma fácil o senso comum e justifica grande parte dos pensamentos vulgares. Tal abordagem da filosofia apresenta‑a como uma disciplina que coloca o ato de filosofar, de questionar e de retomar questões esquecidas, ou dadas como resolvidas, acima da própria filosofia como teoria. O importante não é conhecer as respostas que outros deram, mas tentar alcançar, através da questão posta por eles, uma nova resposta, a qual, por sua vez, abrirá o caminho a novas questões.
É nesse sentido que a tentativa pioneira de Lipman constitui um marco referencial e diferencial no que se refere ao ensino da filosofia. No início da década de 1970, após ter ensinado por longos anos introdução à lógica a estudantes universitários, Lipman começou a se preocupar com o valor de tal curso, ou seja, qual seria o possível beneficio que seus alunos obteriam ao estudar regras para determinar a validade dos silogismos ou ao aprender a construir orações contrapositivas. Eles, realmente, raciocinavam melhor como resultado do estudo da lógica? Não estariam seus hábitos linguísticos e psicológicos já tão firmemente estabelecidos que qualquer tipo de prática ou instrução no raciocínio chegaria tarde demais? Tais indagações levaram Lipman a pensar, hipoteticamente, que o problema não estava propriamente na universidade, mas na educação básica que esses alunos haviam tido. Ele constatou que era possível ajudar as crianças a pensar com maior habilidade. Foi nesse contexto que nasceu o programa de filosofia para crianças que se espalhou pelo mundo todo, inclusive no Brasil, constituindo um importante referencial e um projeto “revolucionário” que buscavarepensar a educação.
No dizer de Lipman (1990, p.19), “há muito se desconfiava que a Filosofia carregava dentro de si tesouros pedagógicos de grande generosidade e de que esses tesouros poderiam, algum dia, seguir o método Socrático e dar sua valiosa contribuição para a Educação”.
Restava saber de que maneira tais tesouros poderiam ser colocados a serviço das crianças. Certamente, não poderia ser da maneira que costumeiramente era feito, pois a própria história se encarregara de demonstrar que tais esforços eram inúteis. Isso levou Lipman a criar uma história para crianças. Não uma história do tipo em que os adultos, que sabem tudo, benevolamente, explicam aos pequenos ignorantes as diferenças entre pensar bem e pensar mal. Deveria ser algo que os pequenos descobrissem por si mesmos, com pouca ajuda dos adultos. As crianças da história deveriam formar, de alguma maneira, uma pequena comunidade de pesquisa, na qual cada uma participasse, pelo menos em alguma medida, na busca cooperativa e na descoberta de modos mais efetivos de pensar. Para isso, “a Filosofia precisava sacrificar a terminologia hermética e transformar‑se em um romance filosófico, um trabalho de ficção constituído de diálogos em que as ideias filosóficas estariam espalhadas profusamente em cada página” (Lipman, 1990, p.22).
Inicialmente, Lipman acreditava que tal “história” seria um livro que as crianças pudessem encontrar por si mesmas quando fossem a uma biblioteca ou que algum parente lhes desse de presente para ler e discutir. Entretanto, aos poucos, foi constatando que era preciso filosofia para crianças tanto na escola quanto em casa. Por isso, valendo‑se dos estudos de Piaget, Lipman realizou uma experiência de campo com dois grupos de crianças selecionadas por acaso. Cada grupo tinha cerca de quinze crianças, que tinham duas aulas por semana durante nove semanas, tendo sido cada um deles submetido a um pré‑teste e pós‑teste. No fim do período experimental, a pontuação do grupo de controle em raciocínio lógico permaneceu imutável, ao passo que a do grupo experimental tinha dado um salto de vinte e sete meses. Posteriormente, em 1975, o experimento foi ampliado para duzentas crianças. Desse experimento a melhora na leitura foi substancial e surpreendente. As provas experimentais de melhora acadêmica convenceram Lipman de que as escolas poderiam aceitar tal iniciativa como um programa de habilidades de pensamento e de raciocínio, ao mesmo tempo em que as crianças, dentro da sala de aula, lhe dariam uma entusiasmada acolhida.
A partir da tentativa pioneirade Lipman, muitos educadores, preocupados em desenvolver a qualidade do pensamento das crianças, têm percebido que a filosofia é uma opção educacional estimulante e confiável. O mesmo acontece com aqueles que estão envolvidos com programas de humanidades para as séries iniciais do ensino fundamental. A filosofia oferece às crianças e jovens a oportunidade de discutirem conceitos, tal como o de verdade, que existem em todas as outras disciplinas, mas que não são abertamente examinados por nenhuma delas. A filosofia oferece um fórum no qual as crianças e jovens podem descobrir, por si mesmas, a relevância, para suas vidas, dos ideais que norteiam a vida de todas as pessoas.
É frequente ouvirmos dos professores universitários e, mesmo, do ensino médio, “reclamações” de que seus alunos apenas memorizam os conteúdos pelos quais serão testados e não aprendem a pensar uma disciplina. Essa noção sobre o pensar uma disciplina é bastante ardilosa.
A maioria dos professores pressupõem que certas habilidades elementares sejam dominadas por seus alunos, quando,na verdade, isso raramente acontece. Sempre que investigamos, empregamos uma variedade de habilidades cognitivas, as quais podem ser extremamente elementares, como fazer distinções e conexões, ou extremamente complexas, como a descrição e a explicação, que são composições intrincadas de habilidades mais simples usadas de uma maneira coordenada.
Na visão de Lipman, o cerne do problema da educação contemporânea deve‑se à deficiência nas habilidades elementares e, por conseqüência, das habilidades mais complexas. É comum, por exemplo, os professores de álgebra se sentirem aborrecidos quando descobrem, a cada ano, que seus alunos não possuem as habilidades necessárias para resolver problemas algébricos elementares, para não falar da incapacidade de “pensar algebricamente”. Assim, surgem os questionamentos: quem deveria ensinar tais habilidades? Se os professores de álgebra ou de qualqueroutra disciplina tivessem de ensinar tais habilidades, não correriam o risco de descuidar sua própria disciplina? Por outro lado, se tais alunos não estiverem de posse de tais habilidades, conseguirão ter êxito nas disciplinas que exigem o domínio necessário de certas habilidades? Qual é a solução? Continuaremos com a velha postura de ficar criticando os sistemas educacionais sem dar condições objetivas para enfrentar a problemática?
A proposta de Filosofia para Crianças (também chamado de Projeto de Educação para o Pensar) de Lipman ganhou visibilidade nos anos 1980 e espalhou-se pelo mundo. No Brasil chegou em 1985, espalhou-se em todas as regiões brasileiras e possibilitou que em milhares de sala de aula a filosofia se torna-se algo vivo, apaixonante e promissor para o aprimoramento das habilidades de pensamento.
A forte presença dos princípios neoliberais ocorrida nas últimas duas décadas fez com que o projeto de educação para o pensar perdesse sua força e cedesse espaço para outras formas instrumentais de organizar o trabalho escolar. Por conta disso, temos o retorno de um neotecnicismo que está mais preocupado em formatar jovens e crianças do que promover o pensamento crítico, criativo e cuidadoso.
Para os que desejarem aprofundar sobre o Ensino de Filosofia, indico a coletânea Um olhar sobre o Ensino de Filosofia (Altair Alberto Fávero, Jaime José Rauber e Walter Omar Kohan – orgs), publicado em 2002 pela Editora Unijuí. Segue o link do PDF do livro para os que se intessarem:
https://www.researchgate.net/publication/356987044_Um_olhar_sobre_o_ensino_de_Filosofia
Referências bibliográficas
IGLÉSIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In: RESENDE, Antonio (Org.). Curso de filosofia.São Paulo: Zahar, 1996, pp.11-16.
FÁVERO, Altair Alberto; RAUBER, Jaime José; KOHAN, Walter Omar (orgs.). Um olhar sobre o Ensino de Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002.
JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico.São Paulo: Cultrix, 1975.
LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola.São Paulo: Summus, 1990.
LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
Autor: Altair Alberto Fávero. Com a edição desta publicação, completa 70 textos publicados no site. Conheça os demais textos, acessando link do autor: https://www.neipies.com/author/altair/
Edição: A. R.