Em Defesa da Palavra

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“Em Defesa da Palavra”, do autor Eduardo Galeano, é aquele tipo de texto que você quer mostrar para todo mundo.

Conheci esta sua instigante reflexão nos anos 1990, por intermédio de uma professora de Literatura no Ensino Médio, numa escola estadual de Santo Ângelo, RS. Este texto marcou-me profundamente, a tal ponto que o retomo agora, ao ser acolhido como membro efetivo da Academia Passo-fundense de Letras, pois o considero um tratado sobre a necessidade da autenticidade da escrita e da literatura.

Gosto muito de um outro texto, um conto do autor, cujo título é “O mundo”. Não canso de repeti-lo e recontá-lo, pois tem um jeito especial de fazer todo mundo entender as diferenças entre os humanos.

Assista (na voz de Eduardo Galeano):https://youtu.be/pi0LhCR_aQs?t=68

Segue o texto “Em defesa da palavra”, do autor Eduardo Galeano.

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Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo na nossa cabeça: “Vale a pena escrever? Será que as palavras sobreviverão em meio aos adeuses e aos crimes? Tem sentido esta profissão que escolhemos, ou pela qual fomos escolhidos?

As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros para denunciar aquilo que perturba e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais, porque supõem que a literatura transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a conhecer melhor, para nos salvar juntos.

Na realidade, escrevemos para pessoas com cuja sorte ou má sorte nos sentimos identificados: os que comem mal, que dormem pouco, rebeldes e humilhados desta terra; que em geral nem sabem ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantas dispõem de dinheiro para comprar livros?

Que bela tarefa de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema da fome e das cadeias visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?

Escrevemos para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem, por dentro; mas aquilo que escrevemos só pode ser útil quando coincide, de alguma maneira, com a necessidade coletiva à conquista da identidade.

Ao dizer “Sou assim” e assim me oferecer, avalio que eu gostaria, como escritor, poder ajudar muitas pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo.

A obra nasce da consciência ferida do escritor e projeta-se ao mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade.

Acredito no meu ofício. Creio no meu instrumento. Nunca pude entender por que escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entender os que convertem a palavra em alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.

Creio que a função primordial da literatura atual consiste em resgatar a palavra, que foi usada e abusada com impunidade e frequência, para impedir ou atraiçoar a comunicação.

“Liberdade” é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se “Democracia” a vários regimes de terror; a palavra “amor” define a relação do homem com seu automóvel; por revolução entende-se aquilo que um novo detergente pode fazer na sua cozinha; “glória” é o que um sabonete de certa marca produz; “felicidade” é a sensação que se tem ao comer salsichas. “País em paz” significa em muitos lugares da América Latina, “cemitério em ordem”; e onde se diz “homem são” deveria ler-se muitas vezes “homem impotente”.

Ao escrever, é possível oferecer o testemunho do nosso tempo e da nossa gente, para agora e para depois, apesar da perseguição e da censura. Pode-se escrever como que dizendo, de certa maneira: “Estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim fomos”.

Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literatura que não ajuda os demais a dormir; antes, tira-lhes o sono; que não se propõe enterrar os nossos mortos; antes que perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca, procura acender o fogo.

Essa literatura continua e enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam. Se é melhor como cremos a esperança à nostalgia, talvez esta literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais, que mudarão radicalmente o curso da nossa história, mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. E, quem sabe, ajude a guardar, para os jovens que virão, “o verdadeiro nome de cada coisa” – como dizia o poeta.

Autor: Eduardo Galeano (1940 – 2015). Escritor uruguaio, autor de “As veias abertas da América Latina”.
Do livro “Crónicas 1963-1988”.

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