Nosso desafio não é só com a gestão do caos e dos riscos, mas também com a construção de outro sistema capaz de prevenir novos desastres. Se os extremos climáticos provocam migrações forçadas; de outra parte, nos forçam a fazer mudanças substanciais e urgentes na forma de pensar e de agir.
O Rio Grande do Sul vem experimentando uma espécie de dilúvio. Parece mesmo reedição do episódio bíblico narrado no livro do Gênesis (cap. 6 a 9), com destaque para a figura de Noé e sua arca salvadora. Os elementos causadores da inundação atual são diversos. As interpretações que se fazem do fato vão desde as mais fundamentalistas e moralistas até as mais superficiais ou negacionistas. Não faltam opiniões enviesadas e descabidas, atribuindo a causa dos desastres ao ateísmo, à bruxaria, ao castigo de Deus ou à governança do demônio.
Em contrapartida, se intensificam análises científicas sobre as origens e as consequências das emergências climáticas. A rigor, não é possível simplificar o que é naturalmente complexo. Não há soluções fáceis e individuais para problemas gravíssimos e coletivos. Além de prejuízos materiais, econômicos, culturais e ambientais, as inundações também trazem danos à própria esperança e autoestima humanas. De outra parte (ainda bem), evocam inundações de solidariedade nas suas expressões mais humanitárias possíveis.
Os eventos climáticos extremos produzem também muitas migrações forçadas em todo o mundo. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), mais de 30,7 milhões de migrações foram registradas em 2020 em função de desastres relacionados ao clima. A Organização Internacional para Migrações (órgão ligado à ONU) estima que, só em 2022, mais de 700 mil brasileiros precisaram se deslocar, a maior parte em função de enchentes. Com as inundações no Rio Grande do Sul, em 2024, mais de 615 mil pessoas tiveram de deixar suas residências. Os migrantes do clima ou refugiados climáticos (por conta de enchentes, ciclones e secas) estão aumentando cada vez mais em nível mundial.
Para evitar que migrações ocorram de maneira súbita e forçada por tragédias ambientais, elas poderiam ser planejadas em conjunto com pessoas interessadas e os poderes públicos locais, estaduais e federais. No caso das inundações no Rio Grande do Sul, migrações organizadas e amparadas social e economicamente acabam sendo uma alternativa, entre outras, para famílias que tiveram perdas significativas ou totais de suas residências, de seus locais de trabalho no meio urbano ou rural.
Migrações para outros locais dentro da própria cidade ou município, dentro do mesmo estado ou para outros estados em que os habitantes estão diminuindo, podem ser pensadas como uma das formas de enfrentar a situação emergente. No Alto Uruguai gaúcho, por exemplo, dos 32 municípios que compõem a região, apenas 4 aumentaram sua população comparando o Censo do IBGE de 2010 com o de 2022. Os demais 28 municípios tiveram redução de habitantes, sobretudo da população que vive e trabalha no meio rural. Fomentar o repovoamento de zonas rurais, além de estimular a produção agrícola e agropecuária, poderia reconstituir comunidades que estão cada vez mais esvaziadas.
Entre outras medidas diante do contexto de crises atuais, é importante também o combate efetivo ao racismo ambiental e às injustiças climáticas, bem como o enfrentamento do consumismo, do desmatamento, da poluição e da exploração destrutiva da natureza. É fundamental estimular a transição energética, a produção agroecológica, a economia solidária, a educação ambiental crítica, a conservação dos ecossistemas, a pesquisa sobre as mudanças climáticas, etc.
Conferências municipais, estaduais, nacionais e mundiais de meio ambiente são espaços essenciais para discutir novas políticas e assumir compromissos conjuntos de restauração e preservação da Casa Comum.
Há uma conexão evidente entre a destruição das floretas e o aquecimento global; entre o desmonte da regulação ambiental para favorecer a mercantilização da natureza e os eventos catastróficos.
Nosso desafio não é só com a gestão do caos e dos riscos, mas também com a construção de outro sistema capaz de prevenir novos desastres. Se os extremos climáticos provocam migrações forçadas; de outra parte, nos forçam a fazer mudanças substanciais e urgentes na forma de pensar e de agir. Parafraseando o Hino do RS, poderíamos dizer: ‘Sirvam nossas tragédias de alerta a toda terra’!
Leia também: O que aprender e ensinar nas escolas a partir de tragédias ambientais como a do RS: https://www.neipies.com/o-que-aprender-e-ensinar-nas-escolas-a-partir-de-tragedias-ambientais-como-a-do-rs/
Autor: Dirceu Benincá, professor universitário (UFSB e FURG). Também escreveu e publicou “Quando as àguas baixarem”: https://www.neipies.com/quando-as-aguas-baixarem/
Edição: A. R.