Ensino remoto: falta o calor humano do abraço

1678

A tela do computador só esquenta devido
a energia elétrica, a gente se aquece com o calor
de um abraço afetuoso que só os seres humanos sabem oferecer.


Pela tela do computador abraço os meus alunos, mas um deles me diz que não é a mesma coisa do abraço presencial e manda um emoji triste para mim. Fico a pensar em quantos abraços deixei de dar nesses últimos cinco meses, em quantos desabafos e conselhos ficaram perdidos por trás da tela do meu computador.

Às vezes me veem as lágrimas e eu choro pensando nos meus alunos distantes, bem distantes, que não têm sequer condições técnicas e financeiras de assistirem as minhas aulas. A inclusão digital ainda é um sonho para muitas escolas brasileiras.


Em outra publicação do site, já escrevi que “quem ensina a crianças deve saber o quanto elas gostam de nos abraçar e cheirar. Com essa preocupação, sempre fui às minhas aulas o mais bem vestida possível nas escolas que não exigem fardamento, gastei muitas vezes o meu salário quase todo para comprar um perfume francês que tivesse um cheiro agradável e que ficasse fixo no corpo durante várias horas”. Leia mais aqui.


Os recém-nascidos nos seus primeiros momentos de chegada ao mundo são colocados nos braços da mamãe e recebem o calor do seu abraço. Nos braços da mamãe, o choro logo se abranda para muitos deles. Esse abraço que transmite um calor amoroso e seguro. A mãe busca passar para o filho que ele não precisa se preocupar nos seus braços. Ali ninguém o fará mal nenhum. É assim também quando o professor abraça um aluno, envolvendo-o carinhosamente como se seu corpo fosse um ninho.

O abraço diz sempre o que as palavras não conseguem dizer. Lembro-me de uma canção antiga que diz mais ou menos assim “correndo da chuva, tendo seus braços para me abraçar, eu era tão feliz, feliz…” Como fazer crianças e jovens felizes por meio de uma conexão remota? Como abraçá-los quando correm de problemas, frustrações, pressões e dúvidas do dia a dia se estamos tão distantes? Como salvar os nossos alunos da morte da perseverança?

Mexendo na minha caixa de lembranças escolares, acho a foto de uma aluna abraçando a sua bola. Que foto linda! Quanto carinho ela devia ter por aquela bola! Que abraço gostoso e sorriso largo no seu rosto! Imaginei-me sendo aquela bola e entrei no túnel do tempo para ser abraçada por aquela aluna do jeito que ela abraçava a bola.

Acho que ando necessitando de abraços. Estou mais necessitada do que os meus alunos, eles têm uns aos outros, eu não tenho meus amigos professores por perto.

A maioria dos meus alunos moram perto e muitos são da mesma família ou de famílias próximas. Eles se veem, se abraçam, trocam confidências, conversam. Ainda bem que vivem assim. Penso nas crianças que moram em grandes edifícios e nunca veem seus amigos ou professores com esse distanciamento social. E que distanciamento estamos vivendo! A tela do computador só esquenta devido a energia elétrica, a gente se aquece com o calor de um abraço afetuoso que só os seres humanos sabem oferecer.

Até os animais se abraçam para trocarem afetos e cuidados especiais. Num abraço o calor humano é compartilhado e ninguém sente frio. Os animais se abraçam por uma questão de instinto e sabedoria da natureza. Nós, humanos, abraçamos porque somos emotivos e necessitamos uns dos outros, ou seja, aprendemos a viver em sociedade.

Ninguém é uma ilha. Precisamos do outro para vivermos melhor. O calor de um abraço é poesia que se escreve na alma de quem abraça e de quem é abraçado.

Estão matriculados no meu de curso de filosofia vinte e cinco alunos, mas ontem só tinham três alunos online. Os demais mandaram mensagens depois dizendo que estavam sem dados móveis para acessarem a Internet, pediram desculpas e me abraçaram virtualmente. Antigamente, o emoji do abraço era o seguinte []. Isso mesmo, dois colchetes. Logo no início da internet, nos tempos do ICQ.

Os nossos encontros presenciais eram sempre cheios de abraços, brincadeiras, carinho, aconchego. Qual criança não gosta de abraçar e ser abraçada? Aquela carreira com os braços abertos vestida em sorriso largo pronta para abraçar aquele que espera para instruir e ao mesmo tempo educar, sim porque nesse país os professores fazem as duas coisas ao mesmo tempo.

Ontem descobri, mexendo no meu computador, que ele estava quente por demais, seu cooler está com problemas, disse o técnico. O cooler deve ser o coração do computador com acúmulo de calor porque não aprendeu ainda o que é um abraço. Pensei comigo que talvez ele tivesse recebido o meu calor humano e não soube como transmitir aos alunos… computadores não são inteligentes, mas sim quem os programa.

Nos meus mais diversos estudos sobre a Inteligência Artificial entrei numa área faz alguns poucos anos onde os computadores sentem emoções. Bastante interessante para quem tem curiosidade de saber se é possível fazer uma máquina chorar ou sorrir. Sim! Elas podem ter emoções! Estudei algumas coisas e achei empolgantes na época! Porém, nada substitui o homem!

As máquinas podem até chegar a amar, mas nunca poderão passar esse calor humano que liga professor e aluno. Calor humano que recebe o aluno tristonho na sua sala e ouve, atentamente, os seus problemas.

Alunos que sofrem maus tratos em casa são os mais comuns dos relatos que ouço. Dói no coração saber que damos tanto amor aos nossos alunos enquanto eles estão na escola e quando vão para as suas residências, ao invés de receberem muito mais amor, são obrigados a fazerem coisas que não gostam senão poderão ser vítimas de agressões físicas.

Outro dia, um dos meus alunos chegou com uma mancha roxa no braço direito. Desconfiei logo. No final da aula o chamei e perguntei que mancha era aquela. Ele mentiu dizendo que tinha escorregado no banheiro. Relutou e não me disse a verdade. Passados alguns dias, sem a mancha aparecer mais ele me contou tudo. O seu pai queria que fosse participar de um acerto de contas entre facções, como negou-se a ir o pai puxou-o fortemente pelo braço para fora de casa obrigando-o a ajudar os amigos da tal facção. O restante da nossa conversa deixo guardada dentro de mim. Melhor não contar. É muito dolorida. O fato é que abracei meu aluno com todo o meu amor e chorei junto com ele. Nunca mais soube dele. Tem faltado as aulas remotas. Sempre me falou de que não gosta desse tipo de aula. Acho que ninguém gosta, quis dizer a ele.

O calor humano jamais poderá ser transmitido pela conexão de uma banda larga, coisa difícil no nosso país. Os jovens mal têm acesso a uma conexão em casa. Esse calor que aproxima as pessoas, que passa confiança, que extrapola a distância entre professor e aluno jamais poderá ser transmitido por uma fibra óptica ou conexão sem fio.

Está difícil ficar longe dos meus alunos. Sou mais conselheira do que professora na escola onde leciono. Tenho alunos com os mais diversos tipos de problemas.

No último dia de aula presencial, uma aluna estava para receber o resultado do seu teste de gravidez. Não sabia o que faria se o resultado fosse positivo, pois nem sabia direito quem era o pai da criança e a sua família jamais a aceitaria grávida em casa. Os pais dessa jovem ainda chamam de “mãe solteira” as jovens que têm filhos foram do matrimônio e são muito mal vistas na comunidade. Envergonham a família. Lembro-me que minha aluna estava apreensiva e com cólicas, à espera do resultado. Na minha humildade, falei para ela que encontraríamos uma saída e a abracei.

Eu sempre abraço os meus alunos quando não tenho respostas para eles. Parece-me que o abraço é a melhor resposta que encontro, e como um santo remédio cura as dores e aflições que os trazem até mim.

Conversando com uma professora amiga outro dia, ela me disse que o mais difícil para ela nesse ensino remoto está sendo elaborar aulas para os alunos com necessidades especiais. Ela não tem ideia do que fazer. Sente muitas saudades de um aluno autista e de outro que é portador de uma doença degenerativa e vive em uma cadeira de rodas, esse mal fala.

 O que ensinar a esses alunos através do computador se eles precisam de alguém que pegue nas suas mãos e os ajudem a fazerem as lições? Quem vai pegar nas mãos deles? Se eu costumava cantar e abraçá-los quando ficavam nervosos em sala de aula com o barulho dos demais alunos.

 A professora não sabe o que fazer com os seus alunos. Mas, como todo bom professor, ela reinventou-se e comprou um violão para tocar música para eles, vale salientar que ela não sabe nada de instrumentos musicais. O aluno autista sequer se conecta a internet. Ele não gosta. Ele sente saudades da tia, como é carinhosamente chamada a professora dos primeiros anos escolares, que o ajudava a pintar o desenho, diz a mãe preocupada com o filho.

A gente se abraçava nos corredores da escola, no caminho, na sala dos professores, na biblioteca. A gente se abraçava onde se encontrasse, isso porque somos humanos e necessitamos uns dos outros. Um abraço transmite além de confiança e amor, tranquilidade, aquele vai ficar tudo bem ou vai passar é dito num simples abraço.

Se meus alunos têm sentido falta de um abraço presencial, digo com certeza de que também tenho sentido saudades dos seus abraços que gostavam de sentir a fofura do meu corpo. A gente abraça para sentir calor humano, a gente abraça para aliviar a nossa dor, a gente abraça para compartilhar sentimentos, a gente abraça para agradecer, a gente abraça porque queremos sentir que a pessoa amada está ali pertinho e nunca partirá. Porém, nesses tempos de distanciamento social, já não podemos mais abraçar nem as pessoas de casa imagine nossos alunos que estão bem longe da gente.

A minha maior emoção na penúltima aula foi ver a minha aluna de trezes anos chorar diante da tela do computador dizendo que estava com saudades do meu abraço e que estava precisando muito de um. Fiquei sem palavras. A aula foi interrompida. Todos os outros alunos disseram a mesma coisa.

Por detrás da câmera não é mais fácil segurar as emoções, ao contrário. Você tem que ser forte, buscar coragem nos confins da sua alma para não chorar diante dos seus alunos que estão distantes e poderão sofrer mais ainda com a sua reação. Sorri na tela do computador e lhes mandei um abraço apertado virtualmente. Disse-lhes de que tudo passaria e logo poderíamos nos abraçar presencialmente. A aluna de trezes anos pediu para eu ir à escola pra de longe ela me ver, pra de longe ela poder me abraçar e falou mais “eu só quero ver alguém da escola. Estou com saudades.”

Fui dormir pensando numa forma de abraçar meus alunos mesmo virtualmente de um jeito que eles se sintam mais confortáveis e seguros, como se sentiam nas aulas presenciais. Nas minhas aulas de filosofia, passei a ensinar inteligência emocional para que eles aprendam a lidar com as suas emoções, coisa bastante necessária nos últimos meses.

Tem sido bem difícil para eles aceitarem o ensino remoto, mas é preciso para que as aulas não parem. É a nossa única forma de não ficar mais distante ainda.

Nessa conversa lembrei de uma amiga que tem um filho de dez anos de idade que se nega a assistir as aulas remotamente. O garoto diz que não consegue aprender nada, as suas notas nas avaliações caíram bastante, ele não tem paciência de ficar parado diante da tela do computador duas horas. Seu pensamento se dispersa, quer jogar videogame, quer ir pra rua, inventa mil e uma desculpas para não mais assistir a aula, vai ao banheiro várias vezes, vai tomar água, reclama da vista cansada. Reclama que a conexão está lenta.

O garoto não se adaptou ao ensino remoto, nem eu. Ele costuma dizer para a sua mãe que sente saudades de quando o professor de matemática perdia a paciência diante da gritaria da turma.

Um vídeo de um professor vestido de entregador de pizza tem ganhado visibilidade no WhatsApp nos últimos dias. Ele chega na casa dos seus alunos e entrega a caixa de pizza, depois retira o boné e os óculos e, imediatamente, é reconhecido pelo aluno. A primeira reação dos alunos é correr para abraçar o professor que se afasta para longe porque não pode abraçar para não correr o risco de infectar ou ser infectado pelo vírus que nos separou há alguns meses.

É um vídeo emocionante. Mostra o real sentido do abraço. Aquela vontade de agradecer, de sentir perto, de dizer que você é importante para mim. Um abraço diz tantas coisas que nem sei direito o que falar dele. 



Professor visita seus alunos como entregador de pizza

Nas salas de aulas remotas não temos bolinhas de papel jogadas uns para os outros alunos, até isso está fazendo falta.

A maioria dos meus alunos não gosta de abrir a câmera e preferem mostrar apenas as suas fotos. Eu respeito as suas privacidades. Um deles me disse que não vê a hora de me abraçar novamente porque a tela do seu celular estava quebrada e ele mal me via.

As dificuldades do ensino remoto são muitas no nosso país. Falta tudo aos nossos alunos. Como bons brasileiros que somos, acredito que nunca nos acostumaremos a esse tipo de ensino porque somos um povo alegre e que gosta de abraços e proximidade, calor humano não se transmite em bytes ou ondas magnéticas. Calor humano só se transmite num abraço. Aquele abraço aos meus alunos!

DEIXE UMA RESPOSTA