“O essencial é invisível aos olhos”
Por experiência própria, pena e agulha se afinam e se reconciliam entre si, mesmo tendo funções específicas e singulares. Cada uma tem seus pontos e se fazem ao seu tempo.
Escrever e bordar, são duas tarefas espetaculares, terapêuticas. Cada uma guarda segredos próprios, revelados às mulheres e homens, que souberem desvelar esse segredo. Não se mede, de forma alguma, o trabalho que gratifica e realiza quem o faz, aparentemente oculto ao olhar sem lentes.
Quem não arrisca, não tenta, não exercita dar pontos e juntar letras, dificilmente sentirá gratidão própria deste gesto. Contudo, deveria persegui-lo, procurá-lo, até encontrá-lo. É uma espécie de tesouro, ao alcance de poucas criaturas, cuja busca, não as cansam.
Vemos que o período de Pandemia tem se prolongado mais do que esperávamos, deixando-nos um tanto ansiosos e preocupados. Por vezes, demais desocupados, ou, ocupados por demais, pelas bolhas do mundo virtual, sujeitos ao esvaziamento. Já sentimos que a Pandemia tem se demorado entre nós, agravando ainda mais os dramas humanos do século XXI.
Ainda que haja várias pesquisas em curso, nada nos assegura, em quanto tempo teremos vacinas, seguras e eficazes, capazes de imunizar a maioria das pessoas. O Vírus alcançou, desta vez, o mundo inteiro, especialmente ceifando vidas e deixando sequelas entre os mais pobres, desprovidos de direitos básicos.
Este mundo, alcançado pela pandemia, está fechado sobre si, cuja luz e caminhos de esperança terão que ser reencontrados. Temos o desafio de refazer, com detalhes, as trilhas para esse reencontro.
O momento ainda é de precaução e pré-ocupação. Esta é a orientação dos pesquisadores/cientistas sérios e éticos: precaução. Evitar aglomerações, lavar as mãos várias vezes ao dia, usar máscaras, e sair de casa somente para o necessário. Medidas básicas como estas, tem nos assegurado menos contaminação, menos mortes, e, por isso menos sofrimentos. Ainda assim, há pessoas descrentes, indiferentes e desligadas do que pode ocorrer com o outro, contaminado por mim, ou eu contaminado por ele. Precisamos combater a indiferença dos que se importam apenas com si mesmos, sem olhar para aqueles que encontram no caminho. Contudo, neste sentido, não esperemos, na pura espera, bons exemplos do Planalto e nem da Casa Branca.
Fico muito preocupada com a aparente normalidade, com a reabertura de quase tudo: comércio, casas de festas, igrejas, parques, praças e escolas. As escolas são as que mais nos preocupam, pelo número de pessoas que se envolvem neste retorno e percurso. Há como aceitarmos entre 500, 600 óbitos diuturnamente?
Não quero crer nesta indiferença! A indiferença é o peso morto da história, dizia Gramsci. Não é uma atitude aceitável para nenhum ser humano, frente a qualquer situação de sofrimento do outro. A dor do outro deve nos comover, que significa, nos mover, de alguma forma, na direção deste outro que sofre.
Preocupado com os problemas sociais, ainda mais agravados pela Pandemia no mundo, o Papa nos escreve uma Carta Encíclica, Fratelli Tutti, lançada, a propósito, no 04 de outubro, dia de São Francisco de Assis, Patrono de seu Pontificado. Com o cuidado de quem sabe lidar com a pena, nos exorta ao cuidado da vida, das relações humanas, o jeito de tratarmos a natureza. Como um grande cuidador da alma humana, nos dá o exemplo de um coração aberto ao mundo inteiro, solidário.
Obviamente que o tempo de pandemia força nossa criatividade. A leitura e a reflexão da Fratelli Tutti nos ajudariam a entender melhor este momento, e como vivermos melhor a vida, daqui para frente, se ainda há tempo para repararmos o que envenenamos e estragamos.
A cada dia temos o desafio de organizar nosso tempo e ocupações, por ordem de prioridade, sem esquecer que somos gente, de carne e osso, e com um coração que sangra todos os dias, nos diz Saramago. Somos seres humanos, embora muitas vezes, nossas atitudes provam o contrário: esquecemos de nossa humanidade. Enlouquecer ninguém quer e não é bom que aceitemos a loucura por algo que vai passar, e passará.
Há quem diga: “de perto ninguém é normal”. Eis a oportunidade extraordinária de ficarmos bem perto de nós mesmos, muitas vezes, somente de nós mesmos. Quem sabe, podemos confirmar e reconhecer nossa própria anormalidade. E assim nos perguntar: como me vejo? Como me trato? Como me escuto? E como ouço a voz de quem não está presente? Se enlouquecermos, teremos duplo trabalho: lutar para voltarmos ao normal da vida, dos pensamentos, dos sentimentos. Quantos desafios o tempo de Pandemia está nos impondo! Tenho pensado que a depender do comportamento de cada um de nós, tudo vai passar, e resultará em um grande aprendizado.
Mas, com o que mesmo ocupamos o nosso tempo, limitados de encontros e abraços? Que experiências, aprendizados recolhemos e partilhamos?
Pois é, eu encontrei um jeito, por ora, bem saudável para conviver e enfrentar o tempo de recolhimento, que demora a passar. Retomei o bordado à mão, iniciado há 4 décadas, deixado um tanto de lado pela labuta do cotidiano. Sem muito pensar, comecei a bordar, a princípio, desinteressadamente. Preparei o tecido, as linhas coloridas, as agulhas, os desenhos e o antigo carbono para passar os desenhos, do papel para o pano. Bordei um ramalhete, e depois outro. A cada obra, me via admirando o que fazia. Sentia forte alegria e amava o resultado. Olhava, admirava, estranhando o que eu mesma havia feito. Ponto por ponto, bordando o pano, como se plantam flores na terra, combinando umas com as outras. Bordar o tecido e plantar flores guardam relação intima. As flores bordam o chão, e cada estação da natureza, requer qualidades próprias. Ambos precisam de planejamento, combinação, ponto por ponto.
A escrita, aqui batizada de pena, porque em outros tempos, a caneta utilizada para escrever as missivas, única forma de se comunicar à época, era uma pena, banhada na tinta, também têm me ocupado, saudavelmente. Este ano escrevi acima da média dos últimos anos. E por isso posso afirmar, a escrita é uma verdadeira e bem sucedida terapia pedagógica, mais ainda quando se reconcilia com o bordado. As duas atividades combinam, pedagogia e terapia.
Entre a agulha e a pena não há distância. Elas se complementam, sem desconfiança alguma. Há sim, acordos. Quando a pena trabalha, a agulha olha, pensa, se recompõe, descansa. Planeja os próximos pontos, a combinação das cores.
Enquanto a agulha trabalha, é a vez da pena descansar, remoer, matutar, estranhar sua própria escritura. Naturalmente, nenhuma se queixa de estar trabalhando ou estar descansando. Não há sentimento de inveja entre uma e outra. A cada uma, seu tempo. Voluntariamente, sem conflitos, uma dá lugar à outra, sem medo de perder o espaço próprio, seu. O que uma faz, a outra não faz. O que as duas fazem, é encantar-se com os feitos da outra. Contudo, ambas lapidam, falquejando suas próprias, singelas, bonitezas e encantamentos. Ainda cedo elas compreenderam a lição nos deixada por Gorki em 1917: “tão logo comecei a sentir prazer no trabalho – compreendi a decisiva significação cultural do trabalho e entendi que se podia encontrar tanta satisfação em serrar madeira, arar a terra ou amassar pão como em entoar uma canção”.
Sim, a vida neste momento requer ocupação produtiva. Não aquela ocupação do lucro, do capital explorador, que envenena as plantas para produzir mais e ganhar mais. A vida requer ocupação e alimentação, saudável, que inclui o acolhimento de si, do outro, do próprio silêncio. E da valorização do medo da morte e da dor.
O Papa nos orienta à “artesanalidade” da paz, a ser construída, ponto por ponto, um nó depois do outro. Pontos que podem combater as guerras, as discórdias entre povos e nações, a pena de morte, inaceitável e desaprovada em qualquer sociedade e tempo histórico. Com sua sabedoria nos exorta à fraternidade, ao amor fraternal, de abertura a todos. É uma Carta endereçada diretamente a você, a mim, a Tutti Fratelli.
Vejam sua caixa de correio, a Carta deve estar lá, à espera de sua leitura. Vale a pena sentir e experimentar o desejo profundo de Francisco de Assis, vivido com rigor pelo Papa Francisco: A paz é necessária, porque todos somos irmãos.
Como disse acima, a pena e a agulha caminham de mãos dadas, sem discórdias.
Em outra reflexão, já escrevemos que “com um olhar focado na atualidade, temos o Papa Francisco, cuja prática evangélica de solidariedade é viva e profundamente coerente, capaz de ser admirado também por alguns poderosos. Um Francisco, que reza sozinho na Basílica de Roma, emocionado, solidário com as famílias dos entes queridos do mundo inteiro, ceifados pela Pandemia. Leia mais aqui.