Nestes mais 100 dias de pandemia,
o nosso rosto humano de professores e professoras
se transformou em cara de tela de celular ou de computador.
Não saímos mais da frente das telas e
entramos no mundo onde vale a imagem.
Há mais de três meses vivemos sob muita tensão, vulnerabilidade, incertezas, medo e insegurança devido a doença da COVID-19. A vida da humanidade mudou. A vida dos professores e das professoras mudou!
A necessidade de ter que se reinventar em sua prática de uma hora para outra, a exigência e urgência de aprender novas metodologias através do uso da tecnologia, o isolamento social que não permite compartilhar planejamentos e dialogar com colegas na escola, a expectativa de ser esteio para estudantes e famílias são algumas das mudanças que vieram sem pedir licença e para as quais precisam ser dadas respostas!
Essas mudanças trouxeram consigo sentimentos talvez nunca sentidos, como ansiedade, stress, exaustão, insônia… estão afetando a saúde socioemocional de docentes.
Buscar um suporte para enfrentar a crise pessoal e social é fundamental! Aí entra a espiritualidade, como uma estratégia de enfrentamento da crise.
A espiritualidade é a busca inerente de cada pessoa por sentido e propósitos para a vida, conectando-se consigo mesma, com os outros e com o que lhe é significativo e sagrado. Esse significado pode ser encontrado na religião, na relação com uma figura divina ou com a transcendência, pode ser encontrado nas relações com as outras pessoas, mas também pode ser encontrada na natureza, na arte e no pensamento racional.
André Droogers – professor de Antropologia da Religião na Universidade Livre de Amsterdam, diz que definir “espiritualidade é como comer sopa com garfo: a gente nunca termina e fica o tempo todo com fome”.
Para Droogers, espiritualidade tem a ver com experiência, atitude, comportamento, e não tem como ser estudada através de métodos e teorias. Espiritualidade é maior que religião, pois religião é cultural, enquanto que a espiritualidade é algo humano.
Há uma grande oferta de espiritualidade fora do campo religioso, como na mídia, ambiente empresarial, movimentos ecológicos, movimentos exotéricos, autoajuda… Isso surgiu com a chamada modernidade líquida, da qual fala muito bem o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Bauman descreve o líquido como algo fluido, que não mantem a sua forma, que se move facilmente, escorre, transborda, vaza. Bauman usa “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas para falar da história da modernidade, tanto da vida das pessoas como da vida das instituições. E Bauman explica que a modernidade líquida é o oposto à modernidade sólida.
A modernidade sólida está associada aos conceitos de comunidade e laços de identificação entre as pessoas, dando a ideia de perenidade e sensação de segurança. Na era sólida, os valores se transformavam em ritmo lento e previsível. Isso possibilitava algumas certezas e a sensação de controle sobre o mundo – sobre a natureza, a tecnologia, a economia, por exemplo.
Mas acontecimentos da segunda metade do século XX, como a instabilidade econômica mundial, o surgimento de novas tecnologias e a globalização, contribuíram para a modernidade líquida. A perda da ideia de controle sobre os processos do mundo e a mudanças constantes, trouxeram incertezas quanto a capacidade do ser humano se adequar aos novos padrões sociais, criando relações sociais, econômicas e de produção frágeis, fugazes, líquidas.
Se Bauman vivesse hoje, é provável que acrescentaria a pandemia como mais uma das razões para tornar a sociedade líquida! Pois, com a pandemia, parece que nosso mundo ficou menor, ficou mais conhecido, países ficaram “despidos” em suas realidades humanas, as relações ficaram mais instáveis e voláteis.
Apesar de toda evolução tecnológica e científica, temos dificuldade em nos entendermos, não temos certezas de nada, não conseguimos descobrir uma vacina mais rápido que a doença se modifica e evolui. Continuamos sendo individualistas (cada um reza pedindo que Deus cuide de si e de sua família), sempre temos respostas melhores que o outro, temos uma dificuldade de ouvir, admitir e sentir empatia pela outra pessoa!
Nestes mais 100 dias de pandemia, o nosso rosto humano de professores e professoras se transformou em cara de tela de celular ou de computador. Não saímos mais da frente das telas e entramos no mundo onde vale a imagem.
As aulas precisam ser sempre mais criativas, os noticiários precisam trazer sempre mais imagens sensacionalistas, as pessoas fotografam catástrofes ao invés de ajudar as pessoas que estão nelas. Um exemplo recente é George Floyd – várias pessoas ficaram assistindo e fotografando os policiais ajoelhados sobre o pescoço de George, enquanto este implorava por respirar. Enfim, a imagem é a maior experiência.
E a espiritualidade??? Ela pode nos auxiliar no equilíbrio da nossa vida? Ainda há espaço para a espiritualidade?
Se a espiritualidade significa DAR SENTIDO À VIDA, ela pode ser a aquisição do celular mais caro, do curso de tecnologia que vou fazer, do carro do ano, do guarda roupa repleto das roupas da moda, das viagens para os lugares mais extraordinários do mundo. Que sentido de vida é esse? Um sentido banalizado, de aparência, líquido! Que se pode perder a qualquer instante, como a fumaça se desvanece no ar!
Mas a espiritualidade, como SENTIDO PARA A VIDA, também pode estar presente na simbologia e nos ritos do cotidiano, onde os dois mundos, o espiritual e o material, andam juntos, como por exemplo a formatura em um curso, o casamento, a crisma do filho, o batismo da filha, a gravação de um CD ou participação em um trabalho voluntário.
Nestes exemplos acima citados, os dois mundos, o espiritual e o material, tentam se complementar. Mas também podem entrar em choque, pois os ritos podem significar somente uma catarse, se tornando uma espiritualidade ingênua, efêmera. Pensando nos ritos cristãos, se estes não estabelecerem compromissos, se tornam somente uma fé infantilizada, uma religião mais de direitos do que de deveres.
Na medida em que a nossa vida, no sentido se estar VIVO, entra em crise, como a que estamos passando com esta pandemia, é possível entrarmos num profundo processo de crise espiritual. Por quê? Porque as concepções de espiritualidade que serviam de orientação não servem mais! As certezas se tornaram pó! De nada adianta ter o melhor carro do mundo, estar conectado com o mais potente celular, ter planejado a maior festa de casamento já vista, se nada disso podemos realizar!!!! Estamos confinados! Precisamos cuidar da nossa saúde e da saúde de quem está próximo.
Em qual espiritualidade então devemos nos agarrar?
A teóloga, filósofa e religiosa Agostiniana Ivone Gebara sugere que não há só uma única solução para a crise. Há várias. Tudo depende de quais deuses seguimos, a quais deuses prestamos obediência. Neste tempo da pandemia, a concorrência e a “luta dos deuses” aumentou! Cabe refletir a que Deus queremos seguir. Em que queremos colocar nosso sentido de vida.
A chave da virada, que dá sentido à vida – sua, minha, de nossos estudantes, é a CHAVE das competências, habilidades, atitudes, valores e espiritualidade. É hora de olhar para dentro de si mesmo e rever as principais competências necessárias para este momento, as habilidades que precisa para enfrentar as crises, as atitudes que precisa tomar perante a pandemia, os valores que lhe são fundamentais e a espiritualidade que vai nutrir e dar sentido à sua vida. Para isso, é bom observar algumas dimensões:
- Dimensão da Alegria – alegrar-se com as pequenas coisas do dia a dia, com os resultados, com os sorrisos…
- Dimensão do Tempo – dar um tempo para si, para refletir, para desenvolver-se como pessoa e profissional.
- Dimensão do Cuidado – cuidar de sua saúde, cuidar e amar as pessoas com as quais convivemos, cuidar da natureza, fazer boas ações.
- Dimensão da Esperança – o/a professor/a é um ser da esperança, do verbo esperançar, por isso, não deixa de semear.
Milhares de pessoas estão morrendo de COVID-19, mas as que ficam tem a oportunidade de refletir sobre a intensidade com que querem viver enquanto estão aqui! Por isso, conforme as palavras de Martin Lutero, “Se o mundo acabasse amanhã, ainda hoje eu plantaria uma macieira”.
Esta reflexão é fruto de participação em Painel Virtual “Espiritualidade e sentido de vida nas práticas docentes, em tempos de pandemia” realizado pelo CONER Passo Fundo, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Passo Fundo e Sétima Coordenadoria Regional de Educação. Este painel fez parte também da Semana de Formação dos professores da rede municipal de Passo Fundo.
Autora: Profª Ma. Joni Roloff Schneider
Licenciatura em Teologia – Educação Cristã (Escola Superior de Teologia – São Leopoldo); Licenciatura em Artes (FEEVALE); Pós-Graduação em Psicopedagogia (FEEVALE), Mestrado em Educação e Religião (Escola Superior de Teologia – São Leopoldo).