São invencíveis esses meninos e meninas dentro da gente!
Nenhum governo manda nessas crianças peraltas
que vivem na nossa alma.

 

Um galho qualquer enterrado num pote. Foi um menino do prédio que me chamara para ver sua árvore plantada. Pensei, mas não disse, “menino, um galho enterrado não tem futuro de árvore!”. Ele o regou por dias, três vezes em cada, até secar completamente. Depois, elaborou explicações: a árvore perecera por falta de água. Então, me lembrei do tempo em que plantávamos mandioca em galho. Os galhos, ramas, guardam-se durante o inverno. Na primavera, são enterrados. Quase secos. Nascem as raízes e os brotos. Com o menino do galho ressecado e com o menino da memória reaprendi exercícios de ter esperança.

Manoel de Barros tem um poema-história, “O menino que carregava água na peneira”. A mãe o desencoraja, a princípio. “A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso”. Com o tempo, a mãe descobre o menino poeta. Carregar água na peneira pode não ser um despropósito. A mãe repara o menino com ternura e lhe diz: “Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda”.

O poeta inventa palavras, e isso faz muito bem. Inventa mundos e inventa meninos. Sabe bem brincar com a imaginação das crianças. Explora o imaginário de forma inteligente e criativa chamando a criança para dentro da sua poesia. (Rosangela Trajano, filósofa, escritora e poeta)

Manoel de Barros na sala de aula para crianças

Ninguém consegue viver sem meninos e meninas fazendo peraltagens por dentro. Jesus – de quem tudo o que sabemos da infância é “crescia em sabedoria, estatura e graça” – põe a chave de entrada ao Reino dos Céus no coração infantil. Não me parece adequada a interpretação por ingenuidade ou inocência. Os meninos do Reino são benditos por exercitar esperanças. Se o galho não brotou, não foi incapacidade dele; é culpa das regas poucas.

A razão é insuficiente para manter a vida. O amor também. Reinterpretei Jesus e me atrevo a reescrever, em parte, o poema ao amor de Paulo aos Coríntios. O amor será o mais importante depois. Agora, aqui no mundo, tudo se enraíza na esperança. Sem esperança o amor é infecundo. A esperança é a primeira vivente e última sobrevivente. Sem ela não sobrará amor para depois. Nem fé. Porque o amor e a fé só brotam em corações palpitantes. E só a esperança desfibrila.

Há séculos, rezamos pela paz, e a paz não vem. Acreditamos no governo, e decepciona. Cremos na justiça, e ela falha. Confiamos na polícia, e ela mata. Amamos, e não somos amados. Estudamos, e somos ignorantes. Investimos na medicina, e velamos amigos mortos por males incuráveis. Criamos os filhos, e eles assassinam. Somos homens, e envergonhamos os bichos.

Só mesmo meninos e meninas para resgatar exercícios de esperança. A filhinha de um casal de amigos ganhou um canário. Um dia, o pássaro desapareceu. Contaram-lhe em meias verdades. Não chorou. Ele foi passear lá na casa da vó dele – disse para os pais –, ele volta. E fez os pais manterem comida e água na gaiola durante semanas. Numa manhã, ao tomar o café antes da escolinha, falou para os pais: – “Não precisam mais colocar água e comidinha para o Piu-piu. Ele me disse que vai morar com a vózinha dele. Lá a comida é bem mais gostosa”.

Se um galho seco não criar raízes, deve ser por pouca rega. Algo imprescindível deixou de ser feito. Usar peneira como balde, roubar um vento e criar peixes nos bolsos são coisas de criança. Sempre estamos à janela esperando a volta de um pássaro. Caso se demore, tomamos um barro e vamos fazendo explicações.

Como são invencíveis esses meninos e meninas dentro da gente! Nenhum governo manda nessas crianças peraltas que vivem na nossa alma.

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