Vamos observar com mais atenção: o planeta já perdeu mais de 20% da biodiversidade original; mais de 70% da superfície da Terra já foi alterada e nada menos que 10 milhões de hectares de florestas (que fornecem água potável para um terço das grandes cidades do mundo) continuam sendo derrubados todos os anos, em várias partes do mundo.
Agora sabemos: do início da era industrial (por volta de 1760) até os dias de hoje, os principais biomas do mundo (especialmente as florestas, tropical, temperada e equatorial) vêm sofrendo radicais alterações e consideráveis perdas, e quase todos os principais serviços ecossistêmicos (responsáveis pela manutenção da biodiversidade) que beneficiam e sustentam as comunidades humanas, apresentam consistentes alterações no corpo da Terra, impactando o ordenamento global das sociedades.
De toda sorte, como estamos numa época na qual a relação direta com a severidade dos impactos ambientais potencializa o que se pode chamar de “multiplicador de ameaças” (para falar como Amitav Ghosh, escritor indiano), tudo indica, metaforicamente, que António Guterres, secretário-geral da ONU, tem toda a razão ao dizer de forma franca que “estamos jogando roleta russa com o nosso planeta.”1
Tal e qual, no rastro do Antropoceno (termo que ainda está longe de ser unanimidade na comunidade científica) está bem claro que nossa sociedade humana, guiada pela economia dominante, vem ajudando a alterar o funcionamento geral geológico e biológico do planeta. Nesse caso, sendo breve, nunca se presenciou as mais significativas alterações no clima e na terra/solo (25% da massa terrestre já foi afetada pela ação antrópica); no mundo das águas (rios, mares, e oceanos, cada vez mais acidificados, ameaçando, agora mesmo, 90% de todos os corais que sustentam pelo menos um quarto de toda a vida marinha) e na biodiversidade; nem mesmo nas geleiras da Groenlândia (segunda fonte de água doce do planeta) que diminuem em velocidade assustadora.
A bem da verdade, nunca, nós, os modernos, estivemos em situação ecologicamente tão crítica (no limite). Pela Organização Internacional do Trabalho, OIT, somos informados que 70,5% da força de trabalho mundial (mais de 2,4 bilhões de trabalhadores, com base em dados coletados até 2020) estão expostos aos impactos diretos e indiretos do clima desequilibrado.2
Como se depreende, com a degradação da biosfera que mina a capacidade do meio ambiente, combinado às perturbações geológicas que aceleram os impactos ambientais produzidos, como se sabe, pela (frenética) busca de crescimento infinito, não resta dúvida que somos, a rigor, Homo complexus (termo frequentemente usado por Edgar Morin), com capacidade de destruir as formas de vida. Talvez porque, e vale a reflexão mais detida, temos muitas dificuldades de reduzir nossa pegada ecológica e nossa pegada hídrica (afinal, nos produtos e serviços que são consumidos está a maior quantidade de água que utilizamos).
De tudo isso, causa e efeito, vamos observar com mais atenção: o planeta já perdeu mais de 20% da biodiversidade original; mais de 70% da superfície da Terra já foi alterada e nada menos que 10 milhões de hectares de florestas (que fornecem água potável para um terço das grandes cidades do mundo) continuam sendo derrubados todos os anos, em várias partes do mundo.
Por isso, sem mais delongas, a narrativa (ou recado básico) que faz o ativista espanhol José Esquinas, se apresenta bastante oportuna: “se não pararmos a destruição de nosso planeta, nada mais terá importância”.3
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Com efeito, nesse “mundo de feridas” (expressão de Aldo Leopold [1887-1948]) em que os 20% mais ricos do planeta “respiram” consumismo puro, somente os últimos 30 anos de nossa época, como a ciência já comprovou, respondem pela metade das emissões globais que a humanidade produziu em toda a história da vida humana – são mais de 410 partes por milhão de dióxido (ppm) de carbono que colocam toda a sociedade humana diante da maior concentração de CO2 já presenciado por nós que aqui estamos. Assim sendo, tocando na nervura central, a World Medical Association [Associação Médica Mundial] nos faz entender, por meio de vários estudos e relatórios, que o aquecimento global é a […] “maior ameaça à nossa saúde no século XXI.”4
Seja como for, diante da emergência de uma economia de produção global que pode aumentar no curto espaço de tempo em 60% a exploração ecológica,pressionando portanto os sistemas naturais (oceanos, solos, biosfera etc) para atender o crescimento populacional que segundo estimativas deve chegar a 23% até 2060, enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) poderá subir cerca de 150% no mesmo período, quem se dispuser a olhar para a trajetória que a economia contemporânea assume para defender as vontades do grande capital, irá constatar, entre outros, a mais radical alteração dos processos da natureza, capaz de deixar em situação crítica o equilíbrio da base que sustenta a complexidade de vida na Terra.
Nesses termos, Aílton Krenak,5 melhor que ninguém, acirrando oportunas críticas ao modelo dominante, não cansa de repetir: “é burrice suicida pensar o desenvolvimento sem integrar os direitos da terra…
Assim, em essência, o brilhante líder indígena ainda faz questão de assim acrescentar: “uma hora ela [a terra] não responderá mais”6
Considerações finais
Fechando o raciocínio, para falar agora como Marie Curie (1867-1934), a cientista polonesa que revolucionou o estudo da radioatividade, só podemos ter esperança de construir um mundo melhor – e isso necessariamente precisa estar combinado com a existência de uma nova economia [social e solidária, humana e ecológica] que respeite o tempo de regeneração da natureza – se, de facto, e antes de tudo, conseguirmos equacionar a tarefa-chave: “aperfeiçoar” os indivíduos. Nesse caso, como se supõe, será imprescindível aplicar em linhas gerais a lição maior outrora deixada pelo eco-teólogo norte-americano Thomas Berry (1914-2009), […] “nos reinventar como seres humanos”.7
De resto, imaginamos poder alcançar ainda, como tarefa complementar, ao menos três ações coordenadas: alterar a lógica da racionalidade econômica, quer dizer, questionar linha a linha o atual paradigma da modernidade; constituir outro modo de “pensar” a economia moderna capaz de valorizar maisa qualidade (o desenvolvimento) que a quantidade (o crescimento), tendo em vista que a Terra é incapaz de suportar o atual modelo dominante; e, por último, reconstruir, a partir de um éthos de convivialidade, o metabolismo Ser Humano-Natureza – Homem-Meio Ambiente.
Momento raro, parece lícito imaginar que, a partir de um novo modelo econômico, cetro de racionalidade bem equilibrada, só teremos possibilidade de sucesso civilizacional completo se for ampliada nossas mais gritantes carências: a cobertura social e a saúde ambiental, diminuindo sobremaneira os extremos da maldosa e desleal desigualdade econômica que não cessa de aumentar em várias partes do mundo.
E para que tudo caminhe bem, precisamos de alguns resultados sólidos, a saber: redesenhar uma nova estratégia planetária; equilibrar os diversos interesses entre a economia e a política; conter a expansão das finanças mundiais; monetizar o custo social de poluir o meio ambiente, adotando o que já é realidade em pelo menos mais de 40 países, isto é, o imposto sobre carbono – a taxação direcionada às grandes empresas emissoras de CO2.
Por fim, dizendo de modo brutal, interessa buscar ao menos cinco significativas ações de desenvolvimento propriamente dito:
(1) reduzir a utilização de combustíveis fósseis, o que significa enfrentar com bastante rigor a mais poderosa indústria dos últimos tempos que movimenta cinco trilhões de dólares anuais; (2) diminuir a emissão de substâncias poluentes; (3) adotar um conjunto de políticas de conservação de energia (com estímulos à energia solar e à eólica, hoje em dia, responsáveis por 7% do fornecimento da eletricidade mundial) e de recursos; (4) substituir recursos não renováveis por renováveis e; tão elementar quanto às demais; (5) aumentar a eficiência em relação aos recursos utilizados.
Notas:
- Disponível em: <https://expresso.pt/sociedade/2024-06-05-ha-12-meses-que-se-batem-recordes-de-temperatura-estamos-a-jogar-a-roleta-russa-com-o-nosso-planeta-diz-guterres-6d486d2c
- Reconstruindo a ‘humanitas’ e novos sentidos para a vida no Antropoceno. Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/categorias/623851-reconstruindo-a-humanitas-e-novos-sentidos-para-a-vida-no-antropoceno>
- Entrevista com José Esquinas: Se não pararmos a destruição de nosso planeta, nada mais terá importância. Disponível em: < https://ihu.unisinos.br/categorias/629853-se-nao-pararmos-a-destruicao-de-nosso-planeta-nada-mais-tera-importancia-entrevista-com-jose-esquinas>
- Acessar: < https://www.wma.net/>
- Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/categorias/628752-a-adiada-descolonizacao-do-brasil-entrevista-com-ailton-krenak>
- Idem
- Recolhido de HARLAND. M & KEEPIN, W. A canção da Terra, Editora Roça Nova. Rio de Janeiro: 2016.
Autor: Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP), pelo Programa de Integração da América Latina (Prolam). Autor de Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018) e A Civilização em Risco (Jaguatirica, 2024), entre outros.
Edição: A. R.