“Estamos vivendo um novo luto?”

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Publicado originalmente em Radis.

Radis conversou com a psicóloga Maria Helena Franco no dia exato em que ela completava três meses em casa — desde que começou a quarentena por conta da pandemia, havia saído à rua brevemente apenas quatro vezes. Cumprir o isolamento social não significa cruzar os braços para a grave situação que assola o país. Grande referência no tema da morte, inventou um mote que vem seguindo dia após dia: “Nós que podemos, devemos!” A fundadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (Lelu/PUC-SP) tem usado as tecnologias para amenizar a dor daqueles que tiveram a vida desordenada pela covid-19, com adoecimentos e perdas de parentes e amigos. Por meio do Instituto Maria Helena Franco de Psicologia, coordena um grupo de 20 psicólogos voluntários e oferece suporte emocional para quem está vivendo o trauma de mortes inesperadas. Também colabora com outras iniciativas parecidas, a exemplo da cartilha elaborada pelo Cepedes/Fiocruz sobre “processo de luto em contexto de covid-19”, da qual foi consultora. Em meio a inúmeras atividades, em um começo de noite de junho, concedeu esta entrevista sobre como viver o luto e a ausência dos rituais de despedida — ela também, a entrevista, uma espécie de acolhimento no momento em que o país extrapola o número de mil mortes por dia.

Pelo começo: o que é o luto? E que diferenças existem no luto experimentado em tempos de pandemia?

O luto é uma experiência natural que ocorre quando você tem um vínculo rompido. Quando você tem esse vínculo rompido, se inicia um processo de luto, que pode ter evidências facilmente detectáveis ou não. Você pode viver o luto no campo das emoções. Pode viver o luto no campo cognitivo — a pessoa pode ficar muito desatenta ou esquecer coisas. No campo da espiritualidade ou religiosidade, quanto ao significado da vida e da morte. E você pode também vivê-lo no campo social, quando se recolhe e não quer se aproximar de ninguém, por exemplo. O luto vai se expressar por todos esses âmbitos — geralmente, todos juntos e misturados. Agora, quando se pensa em contexto de covid, a gente está falando de contornos próprios. E uma pergunta que tenho me feito é: será que vem se desenhando um novo luto? Estamos vivendo um novo luto?

Por quê?

Porque tudo o que vem com esse tipo de morte compõe um jeito muito específico de luto. Ele reúne condições de outras formas de luto. Quando as pessoas vivem um luto, é muito comum a pergunta: Por que comigo? Por que em nossa família? Por que essa pessoa? No caso da covid-19, em que há muito fortemente a questão do contágio altíssimo, as pessoas têm se feito perguntas como: Será que contagiei alguém? Será que não higienizei direito as frutas? Será que não fiz isolamento e isso ocasionou a doença naquela pessoa? Como não pude evitar? No luto, a gente vê muito uma experiência, que denominamos de “reação do sobrevivente”, que é exatamente ilustrada por essa pergunta: Por que ela morreu e eu não morri? A reação do sobrevivente é muito encontrada em acidente na estrada. Por exemplo, o carro capota: o que aconteceu que a pessoa ao meu lado morreu e eu, não? Na covid, esse questionamento está muito presente. Se ele adoeceu por uma falha e foi por uma falha minha, eu vivo esse ressentimento de culpa. O que eu lhe digo: cada um desses recortes, aparece nos lutos sem ser por covid. Agora aqui, com a pandemia, a gente está encontrando eles juntos. Por isso, tenho pensando, que temos um novo luto. Além disso, essa construção de um significado passa muito pelos rituais e nesse momento há essa ausência dos rituais.

Como viver esse luto sem despedida ou rituais?

Adorei que você falou ‘como viver o luto’ em vez de ‘como superar o luto’. Porque o luto é para ser vivido. Não tem um by-pass que eu faça para chegar noutra fase. Ele não é um obstáculo a ser superado. Você precisa atravessá-lo, fazer questionamentos e, se não encontrar respostas, procurá-las de outro jeito. O que temos agora — e isso é muito específico de um momento de pandemia — é essa inexistência ou restrição dos rituais. Existe uma imposição sanitária e não podemos brincar com isso, é fato. Mas na ausência do ritual, você retira uma possibilidade importante de quem está vivendo o luto. O ritual permite que você honre a vida do morto. Ouvimos: ‘Fulano não merecia que tivesse tão pouca gente em sua despedida’. ‘Ele era muito querido. Se fosse em outra circunstância, muita gente estaria presente’. ‘Ele não merecia esse ritual asséptico, desprovido de emoção, desprovido de calor”, enfim. Os rituais são uma tradição, seja trazida pela cultura oral ou vicariante que oferece ao enlutado uma possibilidade muito importante de se reorganizar. Principalmente, diante dessas perguntas que a gente falou há pouco. O encontro do ritual é o lugar em que você pode abraçar outras pessoas que também estão fazendo essas perguntas. Podem até não ter uma resposta ali, mas estão juntos.

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E o que resta às famílias ‘atropeladas’ pela covid-19?  

A gente tem trabalhado muito com as possibilidades de rituais alternativos, criativos, intermediados pela tecnologia. É a mesma coisa? Não, não é. Mas, vamos para a página seguinte! Porque se a gente ficar nessa de “não é a mesma coisa”, a gente não segue adiante. A gente está vivendo muitos “nãos” agora. Acho importante irmos atrás do possível. Se for ficar no “não”, eu não saio do lugar. E se vou para o possível, de repente, pode acontecer algo. Então, é importante encontrar maneiras de engatar o “estamos juntos” e de estar com aqueles para quem eu não preciso contar nada, porque eles já sabem. Esse sentido de pertencer é muito importante para substituir o ritual do jeito que era.

Como o processo do luto não vivido pode agravar sofrimentos psíquicos? É possível dimensionar o que isso pode representar coletivamente?

Acho que posso te dizer de um sofrimento, de um luto, que talvez vá durar mais que a pandemia, porque ele é acrescido de mais mortes, de mais casos de pessoas conhecidas. Com esse número crescente, todo dia alguém fala de alguém conhecido que morreu por covid, isso vai chegando mais perto e tomando corpo. Porque eu ouvi aquela dor e ela se somou a esta e eu também posso estar diretamente afetado. Então, nós vamos ter um luto coletivo denso. Não sei medir isso. Quando digo que vai durar mais tempo que a pandemia é porque eu sei que ele vai necessitar de um tempo de elaboração maior.

Para concluir: o que essas perdas repentinas nos dizem da vida e da finitude?

Vou tomar emprestada uma fala do Mia Couto que ouvi ontem: A morte é como um umbigo [“A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência”]. Ele diz isso para falar que ela é uma cicatriz que fica ali para dizer de uma outra vida que você teve antes daquela ruptura. É isso: a gente também não tem um luto sem ter uma cicatriz. Ela existe para lembrar que a gente viveu aquela dor. Mas essa cicatriz não tem que doer para sempre. Existe para nos lembrar que, ainda que a vida não seja mais como costumava ser, o vínculo com aqueles que perdemos permanece em um novo jeito de viver e em cada recomeço. (ACP)

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