A comensalidade, comer juntos, é um ato humano ético e espiritual.
Não basta comer e comer sem vítimas, é bom comer com o outro, festejar,
banquetear, conversar, reunir e pacificar os espíritos ao redor da mesa.

 

Apresento-vos temas em forma de teses. Progressivas, traçam conexões entre si, como num grande mosaico que envolve os desafios da ética, alimentação e espiritualidade.

 

Ética e moral

Primeiramente faz-se necessário uma distinção importante entre Ética e moral. Ética e moral não são sinônimos. Moral é o que uma cultura, uma tradição, um povo considera correto e bom. Moral é relativa e particular, ancorando-se e expressando-se nos hábitos e nos costumes. Ética pretende ser imparcial, universal e crítica. Crítica no sentido de ser ciência da moral e, enquanto tal, capaz de legitimar e fundamentar normas morais vigentes em uma determinada comunidade histórica, ou deslegitimá-las. Enquanto universal não depende de hábitos e costumes particulares das culturas, mas se sustenta com pretensão de validade para todos.

A moral é, portanto, do âmbito do ser, a ética é do âmbito do dever ser.

O que é bom, eticamente falando, é bom sempre e em todos os lugares e o que não é bom o é da mesma forma. Exemplificando: mesmo que dependa de contextos, torturar nunca será bom, muito menos torturar crianças por exemplo. A moral é, portanto, do âmbito do ser, a ética é do âmbito do dever ser. Enquanto imparcial a ética não depende do grau de poder político, religioso e econômico do agente moral. Isso também vale para os hábitos e costumes alimentares, como veremos.

 

O outro no face a face

A necessidade não conhece lei, nem positiva nem ética.

A ética começa lá onde o outro se apresenta e reclama reconhecimento, respeito, ou simplesmente nos convoca a justiça e direitos com a sua face e olhar. Onde houver o face a face e olhar, aí entra a ética. O outro, por si só, lança-me um apelo ético de justiça e de trato igual ao que considero bom para mim. Não devo fazer ao outro, mesmo que possa, o que não gostaria que me fizesse. A ética se faz urgente e ainda mais pertinente quanto o outro, no face a face e olhar, torna-se vítima contra sua vontade. Sem vítimas não há problema ético. E mais, são as vítimas que julgam se uma ação é ou não ética.

Os usurpadores, os corruptos e os violentadores sempre encontrarão justificativas para suas ações. Aliado a isso associa-se a ideia de consciência e liberdade como condições da ética. Onde impera a necessidade, não há certo ou errado, bom ou mau. A necessidade não conhece lei, nem positiva nem ética.

A ética pressupõe consciência e liberdade. Só há uma questão ética quando estamos diante de possibilidades e condições de dizer não. Ética é, pois, opção. Podemos ser ou não ser éticos; não somos obrigados a ser. Ninguém é obrigado a ser ético. Mas para o nosso bem e dos outros, melhor seria que o fôssemos.

 

Evolução moral e a ética

A ética colabora na evolução da moral. O nosso senso do certo e do errado evolui. O nosso senso de valor e de juízo ético evolui também. Nós evoluímos, por exemplo, no reconhecimento e na ampliação do círculo de inclusão do outro e no reconhecimento do outro como vítima e, por consequência, no reconhecimento da impossibilidade de justificação ética de práticas que historicamente foram consideradas como morais. Escravidão, submissão da mulher pelo homem são exemplo disso.

A consciência moral, também, precisa passar por revisão.

Perdemos a inocência em relação ao mal que causamos aos negros e às mulheres na tradição. Se o racismo e o sexismo já foram aceitos e moralmente tolerados, já não podem mais ser. Se, por acaso ainda houver gente que acha que há superioridade e inferioridade natural por conta da cor da pele e do sexo, precisa passar urgentemente por uma revisão intelectual e moral. Na prática, sabemos que não há só carros e motos que precisam passar por revisão. A consciência moral, também, precisa passar por revisão. E quando fazemos isso, estamos fazendo ética, ciência da moral.

 

Ética na alimentação

Estamos, agora, a um passo de perder a inocência alimentar, inocência no prato. O prato e o que entra nele é algo tão natural que, raramente, e poucos se interrogam, seriamente, quanto à necessidade de pensar e escolher consciente e responsavelmente o que se come. O ato de comer é um ato ético, ou anti-ético. É um ato ético sempre que nele entra o outro reconhecido como outro, respeitado como outro em seus direitos, e anti-ético quando negamos a alteridade do outro enquanto outro.

 

Os animais como “os outros”

De forma direta e sem rodeios, pressupondo já conhecimento de vocês, a comida, a alimentação que inclui dieta animalizada (ovos, leite, carnes e seus derivados) precisa ser confrontada com o juízo de valor: é certo, é justo, é bom?

Não se pergunta se é agradável, se é prazeroso, se é delicioso. A questão não é de gosto, ou de estética, é de ética.

A pergunta que pode ser feita é: é possível se alimentar bem, sem vítimas inocentes como são os animais? Se sim, então por que não?

A decisão ancorada na consciência livre é uma decisão, não somente do âmbito da saúde física, mas da saúde mental, psíquica, espiritual e ética. Aqui a conversa poderia ir longe, evidentemente. Tanto do lado do reconhecimento da enorme crueldade que nós humanos cometemos, imponto sofrimentos bárbaros aos animais no processo de produção, no manejo e na morte, quanto da já plena condição de vivermos muito bem de saúde e até melhor, sem a dieta animalizada. Além da questão ecológica propriamente dita. Quanto a isso, parece não haver contestação teórica, mas tão somente hesitação e resistência a mudar de hábitos.

 

Peter Albert David Singer (Melbourne, 6 de julho de 1946) é um filósofo e professor australiano. É professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Neste vídeo, faz uma grande reflexão sobre a relação humana e os demais seres vivos.

 

 

Alimentação e comensalidade

De passagem, mas não sem importância, é bom lembrar que deveríamos sempre associar a alimentação à comensalidade. Alimentar-se tem um caráter ético pelo que vai no prato, o que comemos e o que não deveríamos comer, mas também é um ato ético e espiritual pela forma como comemos. Alimentar-se é um ato biológico solitário, ninguém mastiga por você, ninguém faz a digestão por você etc.

A comensalidade, comer juntos, por sua vez é um ato humano ético e espiritual. Não basta comer e comer sem vítimas, é bom comer com o outro, festejar, banquetear, conversar, reunir e pacificar os espíritos ao redor da mesa.

A vida nos separa, nos faz competitivos, nos faz até violentos, mas na mesa nos reunimos na paz. Que só é tal se for fruto da justiça, claro. A questão a ser pensada aqui seria a quantas anda a nossa comensalidade. Comemos ao redor da mesa? Com a família, com os amigos, ou sozinhos e com estranhos? Quanto tempo reservamos para a comensalidade diária? O que falamos à mesa? Como espiritualizamos esse ato? Ou fazemos tudo mecanicamente e sem peso e importância?

 

Espiritualidade e alimentação

Talvez seja oportuno acrescentar à ideia da comensalidade que, em si mesma já porta uma dimensão espiritual, a ideia de que alimentar-se sob um horizonte espiritual do bem significará, no mínimo, prestar atenção para três atitudes básicas espirituais: a gratidão, o perdão e a solidariedade.

 

Gratidão

Raramente, somos os produtores do que comemos e nos alimentamos. A fase industrial da produção de bens de consumo, inclusive a alimentar, na sua divisão social do trabalho, nos faz a todos devedores e gratos uns dos outros. Temos alimentos na mesa, fruto do trabalho coletivo da humanidade. A gratidão é o reconhecimento da graça em ação. Não há mérito, ou pouco mérito. Há graça pela ação de Deus, quem acredita, ou pela ação da natureza generosa misturada com a ação de incontáveis mãos que possibilitam o alimento chegar até o nosso prato.

Deveríamos fazer uma profunda genuflexão e uma reverência diante de um prato de comida. O arroz, o feijão, o soja, as verduras, os legumes, as frutas, os grãos, as raízes, o pão… tudo o que comemos passou por mãos generosas e pelo suor do outro. Reconhecer a graça e o dom generoso dos outros e da natureza é sinal de saúde mental e espiritual.

 

Documentário “A carne é fraca”, do Instituto Nina Rosa, sobre o impacto do consumo de carnes nas pessoas e na natureza. O Trivial Gourmet é um programa de televisão sobre reeducação alimentar, que trabalha estes conceitos de forma lúdica durante o preparo de receitas lacto-vegetarianas ou vegetarianas restritas (veganas).

 

 

Perdão

A experiência do perdão é algo da essência mesma da religião. Mas não só, é da essência do próprio humano, falível que é. O mal, que a narrativa bíblica chama de pecado, atinge a todos, mesmo que em níveis e proporções desiguais. Diante do prato, somos todos pecadores, devedores.

Mesmo os que não se alimentam de produtos animalizados, todos participamos de um mal, mesmo que sutil.

Se comemos soja, arroz, feijão, frutas em geral, legumes, verduras, raízes, de onde vêm esses produtos? Quem os produziu? Em que condições? Quanta exploração humana e, até animal, há nos produtos que nos alimentamos?

Às vezes, sem saber, podemos consumir produtos, fruto de escravidão e, se forem alimentos animalizados, imagine o processo de criação-produção, manejo e morte dos animais implicados nesse processo, inclusive dos animais humanos que são submetidos a processos de insensibilização diante do sofrimento e mortandade permanentes.

Em qualquer produto de consumo, imagine a deterioração da natureza, o uso de agrotóxicos, pesticidas que degradam e deterioram a natureza. Não há inocentes diante de um prato.

A atitude de perdão-penitência só pode ser efetiva se, acompanhada de informação, conhecimento e compreensão da dinâmica do sistema de produção, transporte e comercialização-distribuição da qual participamos e colaboramos na reprodução sempre que, na ponta da cadeia, compramos e consumimos. Sem pensar na saúde-doença por causa das escolhas erradas na alimentação. Somos culpados, em parte, pelas próprias doenças que contraímos no consumo de alimentação errada… Ao lado de famintos, há muitos obesos!

 

Solidariedade

A espiritualidade se une à alimentação e à comensalidade, porque é bom que todos tenham de comer. E nem todos têm o que comer! A seguridade alimentar de qualidade é privilégio de alguns, não é ainda direito de fato a todos. É necessário continuar insistindo que a paz e um mundo não-violento só é possível e efetivo com justiça. Justiça é uma das palavras mais pronunciadas e menos realizada. Mas, nem por isso, devemos baixar a guarda na busca da Justiça.

Até que a justiça não se concretize, pelo menos, pratiquemos a solidariedade com os desafortunados e injustiçados.

Mas, não só. Penso que também podemos estender a solidariedade como nota da espiritualidade para os produtores de produtos orgânicos e com sustentabilidade comprovada. A toda forma cooperativada de produção e distribuição menos agressiva e não-violenta. E a toda forma de produção ecologicamente correta, por que não? Para isso, um longo caminho de educação e informação terá que ser percorrido.

 

 

Papa Francisco na Laudato Si’ nos recorda que pensar ecologicamente é pensar integralmente. Tudo está conectado e interligado. Ele dizia em relação à crise social e à crise ambiental. Se há uma crise ambiental essa crise não está dissociada da crise maior que afeta os pobres por um sistema de produção e consumo desumano de exclusão e de morte. Nós, aqui, poderíamos dizer que tudo está interligado na tríplice relação ética, alimentação e espiritualidade.

E o que une e unifica essas três dimensões, ética, alimentação e espiritualidade é uma atitude redentora que nós chamamos de cuidado.

O cuidado é uma dimensão unificadora. Há de haver uma ética do cuidado, uma alimentação cuidadosa e uma espiritualidade do cuidado.

Então, gostaria de encerrar evocando um mito antigo, uma lenda, que dá o que pensar. O filósofo Heidegger resgatou esse mito no seu clássico livro o Ser e o Tempo e Leonardo Boff muito bem o tratou no livro “Saber Cuidar”. O mito diz:

“Um dia, quando Cuidado pensativamente atravessava um rio, ela resolveu apanhar um pouco de barro e começar a moldar um ser, que ao final apresentou a forma humana. Enquanto olhava para sua obra e avaliava o que tinha feito, Júpiter se aproximou. Cuidado pediu então a ele, para dar o espírito da vida para aquele ser, no que Júpiter prontamente a atendeu. Cuidado, satisfeita, quis dar um nome àquele ser, mas Júpiter, orgulhoso, disse que o seu nome é que deveria ser dado a ele. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam, Terra surge e lembra que ela é quem deveria dar um nome àquele ser, já que ele tinha sido feito da matéria de seu próprio corpo—o barro. Finalmente, para resolver a questão os três disputantes aceitaram Saturno como juiz. Saturno decidiu, em seu senso de justiça, que Júpiter, quem deu o espírito ao ser, receberia de volta sua alma depois da morte; Terra, como havia dado a própria substância para o corpo dele, o receberia de volta quando morresse. Mas, ainda disse Saturno, “já que Cuidado antecedeu a Júpiter e à Terra e lhe deu a forma humana, que ela lhe dê assistência: que o acompanhe, conserve sua vida e lhe dê o apoio enquanto ele viver. Quanto ao nome, ele será chamado Homo (o nome em latim para Homem), já que ele foi feito do humus da terra”.

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