Há uma disparada tecnológica terrível. Hoje te matam com o controle remoto, sem sequer colocar a cara, você não tem como reagir. Mataram a poesia. Morreu o espírito, morreu a alma. A ciência contemporânea está condenando o que chamamos de liberdade. Ou melhor: se por liberdade entende-se seguir seu desejo e suas inclinações, a liberdade existe; se por liberdade entende-se poder criar seus desejos e suas inclinações, a liberdade não existe. Este mundo tecnológico e de avanços científicos é pavoroso. Nos deixou sem religião, nos deixou sem alma, nos deixou sem espírito.
Pepe Mujica[2]
De um ponto de vista filosófico, percebo que a pandemia impõe, ao mesmo tempo e sobre todos, um impulso reflexivo que, até agora, era da área de especialistas: precisamos agir com o saber explícito de nosso não-saber. Hoje, todos os cidadãos estão aprendendo como seus governos devem tomar decisões com uma nítida consciência dos limites do saber dos virologistas que os aconselham. A cena em que a ação política se desenrola mergulhada na incerteza raramente foi posta sob uma luz tão forte. Talvez essa experiência incomum, para dizer o mínimo, deixará suas marcas na consciência pública.
Jürgen Habermas[3]
En cuanto a la Ciencia, que iba a dar solución a todos los problemas del cielo y de la tierra, había servido para facilitar la concentración estatal y mientras por un lado la crisis epistemológica atenuaba su arrogancia, por el otro se mostraba al servicio de la destrucción y de la muerte. Y así aprendimos brutalmente una verdade que debíamos haber previsto, dada la esencia amoral del conocimiento científico: que la ciencia no es por sí misma garantía de nada, porque a sus realizaciones les son ajenas las preocupaciones éticas.
Ernesto Sábato, Hombres y Engranajes (1951)
A relação entre ética e ciência retorna com ênfase no contexto da Covid-19. Isto tanto no debate acadêmico quanto nos meios sociais e políticos. No segundo se digladiam o positivismo crasso e o fundamentalismo religioso apegado a crendices. No acadêmico, o cientificismo positivista de um lado, e, de outro, o eticismo precário, in extremis.
As implicações do debate levam, entre outras, à defesa de que a ética fique em quarentena para que a ciência possa agir de modo livre, afinal se a ética só consegue chegar depois, porque meter-se agora, no meio da travessia? Outros entendem que há uma ética, ainda quando dela se abstém de tratar. Há também o debate bioético no sentido estrito que diz respeito aos parâmetros éticos para a investigação e para os atos dos profissionais de saúde no contexto da pandemia. No fundo está a questão de retomar um certo conceito/concepção de ciência e pensar o que significa a tecnologia e sua aplicação aos processos de saúde/doença, parâmetros bioéticos e de direitos humanos. Tentaremos levar adiante alguns aspectos deste debate nos limites do possível.
O que vai pela cabeça…
A pesquisa “Wellcome Global Monitor 2018”,[4] feita com 140 mil pessoas de 144 países, divulgada pela revista Science, mostrou que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência (65% confiam) e que um em cada quatro acredita que a produção científica não contribui para o país. No mundo a maioria confia na ciência: 72% das pessoas acreditam nos cientistas. Quase metade dos brasileiros afirmaram que “a ciência discorda da minha religião” e, desses, 75% disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”. Apenas 13% dos brasileiros entrevistados afirmaram ter “muita confiança” na produção científica. Entre as 144 nações, o Brasil fica em 111º lugar dos que têm “muita confiança” na produção científica. Tomando em conta dados do mundo todo, no caso da saúde a pesquisa revela uma questão forte: 73% das pessoas confiam mais em um médico ou enfermeiro do que qualquer outra fonte de aconselhamento sobre saúde. Ou seja, há pouco espaço para o Dr. Google, apesar de ultimamente ter crescido o Dr. Whatsapp. O estudo mostra também que as pessoas com menor renda familiar têm menos confiança nos hospitais e nos sistemas de saúde.Sobre a confiança nas vacinas: 79% das pessoas concordam que as vacinas são seguras e 84% concordam que são eficazes.
Uma ideia arcaica de ciência
Autoridades de saúde brasileiras em entrevistas ou nos pronunciamentos sobre a Covid-19 tem posições em coincidência com a compreensão média de ciência, aquela que ainda considera meras curiosidades o que está no âmbito da física da relatividade ou da quântica e se apega ao conceito de ciência setecentista. Ou seja, a ideia de que a ciência fornece a explicação das leis de funcionamento da natureza para que se possa, conhecendo-as, produzir mecanismos para subjugá-la. Junto com esta noção está a percepção de que a ciência produz certezas e de que estas certezas, por coincidirem com as leis da natureza, são imutáveis, eternas.
Ora, se a ciência não for capaz de produzir este “consenso”, deixa de fazer sentido e facilmente se substituirá importância por aquilo que pode oferecer algum consolo seguro (alguns tipos de religião). Há uma certa “fetichização” da ciência. Mas, já faz algum tempo que o que menos há na comunidade científica é “consenso” ou mesmo “maioria”. Ainda que “Uma breve história do tempo” (1988),[5] de Stephen Howking, tenha sido lido por milhões de pessoas no mundo todo (vendeu 9 milhões de exemplares em 2002), parece que sua leitura não surtiu efeito. Aliás, ironicamente, em se tratando de Covid-19, a maior certeza “científica” para enfrenta-la é o isolamento ou distanciamento social, a mais antiga prática da humanidade na história da “ciência”, inclusive anterior a toda ciência em sentido estrito, mais uma prática própria do “bom senso”, ainda que hoje em dia se tenha invocado sua natureza científica, talvez porque o que esteja bastante mal distribuído, contrariando a Descartes, seja exatamente o “bom senso”! O consolo vem da ideia de que “logo logo os cientistas descobrirão uma vacina”.
A incerteza…
A expectativa de pensar e conviver com uma concepção de ciência não prepotente parece ficar para traz no afã de “salvar vidas”. O que a quântica mostrou é que não há certeza na ciência e que sua melhor contribuição é sugerir hipóteses explicativas que são razoáveis para dar conta da realidade, mas que nunca são certezas e menos ainda absolutas. Elas são aquelas que melhor sugerem responder aos problemas levantados.
A medicina, aliás, é uma das ciências que mais sabe disso, ainda que nos últimos tempos se tenha visto uma busca desenfreada por “apoios” para diagnóstico e resolutividade, nada desprezíveis, nem por isso absolutos. O prêmio Nobel de química (1977), Ilya Prigogine[6], defende exatamente o “princípio da incerteza” na ciência, de modo que “o elemento novo é colocar a ideia da instabilidade no centro da ciência moderna”. Foi outro Nobel (1932), Werner Heisemberg, em 1927, que enunciou o Princípio da Incerteza ou da Indeterminação, segundo o qual é impossível medir simultaneamente e com precisão absoluta a posição e a velocidade de uma partícula[7]. Num momento de pandemia parece ser muito difícil aceitar esta possibilidade de ciência.
A ciência a serviço da morte
A história está farta de exemplos de uso da ciência e da tecnologia para a morte. O que produzido no contexto do totalitarismo nazista, quando milhões foram mortos com a mais sofisticada aplicação da ciência e da tecnologia (Ziklon B é fruto da pesquisa apurada para matar com o menor custo econômico e de sofrimento), é bom exemplo. Há exemplos também nas supostas sociedades comunistas. Ali também milhares foram submetidos a pesquisas cientificas que nunca foram contestadas, muito pelo contrário, têm sido usadas largamente como base para o “avanço científico” que se lhe seguiu. Mas isso não é obra somente dos estados totalitários: vide o que se tem feito na África em pesquisas para combater HIV/Aids e tantas outras doenças por democracias nos últimos anos. Há uma necrociência que é tão poderosa e que não se dissocia da biociência… aliás ambas se beneficiam mutuamente. Objetivamente: o positivismo mata!
Progresso
A ciência moderna nasceu, cresceu e se espalhou casada com a noção de progresso.[8] Ambas juntas deram guarida ao desenvolvimento do capitalismo e também do socialismo real. Está muito bem casada com o comunismo chinês atual, inclusive. A ideia básica é que o domínio da natureza pela ciência e a sua aplicação pela técnica permitem que se afastem os mitos[9] e se possa progredir para dias melhores. O fato é que o que temos visto é uma destruição dos recursos naturais e a exclusão da maior parte da humanidade dos benefícios do “progresso”. Na prática, o progresso tem significado muito de regressão, como aliás denunciam filósofos da Escola de Frankfurt, particularmente W. Benjamin (“Sobre o conceito de história”, 1940)[10] ainda antes da guerra, mas também Adorno e Horkheimer depois dela (“Dialética do Esclarecimento”, 1947)[11]: o ângelus novus que o diga…
Protocolos discutíveis
A ideia de que frameworks seriam suficientes para dar conta da objetividade e, dessa forma, da impossibilidade dos aspectos ideológicos e éticos entrarem no laboratório da pesquisa cientifica, tem se mostrado insuficiente. Os melhores protocolos são sempre procedimentais e dificilmente se propõe a discutir a questão de fundo. Cometem um erro lógico básico: dão por pressuposto o que efetivamente precisa ser demonstrado. Ou seja, não se ocupam das condições e dos condicionantes vitais que constituem objetivamente (não subjetivamente) a pesquisa e os procedimentos científicos.
Não basta garantir a boa informação, que esta informação seja transparente, que haja consentimento livre e desimpedido, para que seres humanos participem em escala das pesquisas científicas. É preciso muito mais, sobretudo é preciso discutir, por exemplo, em que medida financiadores poderosos não são determinantes do direcionamento, inclusive dos protocolos, na execução da ciência, ou, em que medida a possibilidade de uma “patente” ou sua existência não se constituem em meta para o empenho de investigação (e todo o esforço colaborativo resulte no final no registro por quem mais facilmente pode fazê-lo – e se sabe que isso é sempre “mais fácil” para um europeu ou um norteamericano do que para um/a brasileiro/a). Os protocolos bioéticos emitidos pela OMS/OPAS para a pandemia da Covid-19 são o mínimo do que se pode esperar (e inclusive flexibilizam, sem ser tão expressos, uma série de medidas éticas para supostamente “viabilizar” e “facilitar” a pesquisa).[12]
Distanciamento social e cientifico
Tem-se construído uma tese “científica”, portanto não passível de questionamentos reflexivos, dado que a “ciência descreve as leis da natureza”, de que o isolamento social ou distanciamento social é científico, como já indicamos acima. Qualquer outra forma de tratar o modo de lidar com os seres humanos em termos biopolíticos neste momento seria anti-científico. Isso não pode ser uma verdade absoluta, nem mesmo uma lei da natureza. Até porque esta proposta vem carregada de muitas perspectivas necrocientificas e necropoliticas[13] como as que se expressam nos mecanismos de controle populacional pelos smartfones e que agora usados e “testados em escala” certamente serão herdados como mecanismos para o futuro.
As tecnologias da informação e comunicação são outros aspectos a considerar. Será que vão dispensar professores e escolas em nome da EAD como a mais maravilhosa das soluções…. Homeschoolling talvez não seja uma boa, pais e mães estão fartos de ter que ensinar filhos a fazer tarefas encaminhadas pelas escolas…. Enfim, o problema ético é saber “quando entrar nele” e “quando e em que condições sair dele”[14], afinal esta decisão implica um volume maior ou menor de afetados ou de mortos em consequência. Um é o aspecto biopolítico ali implicado, mas outro é o aspecto subjetivo, pessoal, de responsabilidade pessoal.
Princípio da precaução
A precaução tem sido invocada como elemento para pensar e agir. Afirmada com ênfase a partir das lutas ambientalistas, a precaução se constitui em orientação para a responsabilidade como elemento chave para dirigir a prática ética e científica[15]. No contexto da pandemia, parece estar em suspenso, ainda que seja desejada por quem pensa que qualquer possibilidade de futuro dependeria em muito do modo como se trataria o tema no seu desenvolvimento presente. Por outro lado, as urgências podem ser exatamente portadoras de perspectivas pouco animadoras no sentido de sua efetivação.
Por uma nova ciência, não neutra
A neutralidade da ciência reduziu as finalidades humanas e suas necessidades vitais a interesses compatíveis em processos parciais de modo a permitir que a distinção entre a orientação a valores e a orientação a fatos fosse formalmente estabelecida como parâmetro de toda ciência. Assim quis Max Weber[16], dando efetividade aos desejos modernos mais profundos. Dessa forma, produziu um modo de ciência bem funcional ao capitalismo. Ou seja, a ciência definitivamente não pode se ocupar de questões amplas (das totalidades: não há necessidades comuns, o que há são interesses gerais ou interesses comuns, preferências) por serem impossíveis de serem submetidas à dinâmica instrumental da razão meio-fim. Não seria factível submeter à investigação científica as necessidades humanas, melhor lidar com os interesses e preferências (como já sugeria Adam Smith em “A riqueza das nações”). As necessidades são por demais subjetivas para serem escrutinadas pela ciência. A teoria da ação racional só pode lidar com fins específicos, as necessidades são gerais e comuns, nunca específicas.
Para ser objetiva, a racionalidade precisa poder fazer o cálculo de eficiência e, para isso, precisa lidar com fins específicos para os quais calcula meios também específicos. Ao fazer isso, institui a eficiência e a competição como valores absolutos que se sobrepõem a todos os demais valores que dialogam com a vida e suas necessidades. Note-se que a vida e suas necessidades não é um fim para a qual se podem calcular meios eficazes. Ela é condição de todo fim, e a possibilidade de ter fins específicos. E isto é tão objetivo quanto qualquer fim especifico. Daí que reduzir a racionalidade científica ao que pode ser submetido ao cálculo meio-fim como sendo objetivo é incorrer na “falácia abstrativa” e desconsiderar que a condição de todo fim é tão objetiva quanto qualquer fim especifico. Mas isto remete para ter que superar a distinção entre uma racionalidade voltada a valores e outra voltada a fatos. Toda a racionalidade lida com fatos e valores, ainda que não os explicite e, por vezes, os eleja como absolutos sem que assim o admita (é o que faz a racionalidade meio-fim ao eleger a eficiência e a competição como valores absolutos, por exemplo, ainda que não o admita).
Há uma racionalidade fundamental que se ocupa deste “sujeito necessitado” e não do ator que ele pode representar numa das finalidades específicas. Em suma, somente uma ciência sem sujeito e somente ocupada por um ator (com papeis e personagens pontuais) será possível pensar na objetividade ao modo de neutralidade que tem sido tão cara ao positivismo mortífero e necrófilo. Ele assim se caracteriza pois, como ilustra Hinkelammert[17] com o exemplo dos competidores sentados sobre o galho que estão cortando, a competição resultará em morte, que não é suicídio (em sentido estrito), mas consequência não intencional (da competição). A necrociência daí resultante se combina e é um bom apoio para a necropolítica e a necroética que vão defender que a morte é parte da vida e que, por isso, “muitos morrerão” com a pandemia e não há muito o que fazer, aliás, entre morrer de peste e morrer de fome não há muita diferença, vai-se morrer, muitos morrerão, então que morram trabalhando e com isso seguirão “colaborando” competitivamente com a acumulação capitalista. O que não pode ser questionado, por ser sempre eivado de ideologia são as totalidades mortíferas. Fiquemos com os fins específicos e os meios que os viabilizam!
Por uma racionalidade ética
A questão de fundo que se coloca é a possibilidade de uma racionalidade ética na qual caibam as mais diversas e todas as formas de conhecimento, de ciência, de vida. Esta racionalidade ética haverá que emergir da necessidade de superação da racionalidade vitimária que é exatamente esta racionalidade que admite a morte como parte “naturalizada” do processo (ainda que não seja “natural”) e que trabalha com o “cálculo do suportável”.[18] Não há suportável possível quando se trata da vida, do sujeito necessitado (que é o humano, mas um humano natural, um humano-natureza).
Submeter a ética ao cálculo meio-fim é exatamente eliminá-la do contexto da ciência e autorizar a “ciência dos fatos” a seguir acreditando que está trabalhando sem valores, quando, na verdade, está orientada por valores absolutos como a eficiência e a competição, além de outros. Problematizar estas questões é abrir-se para possibilidades outras de ciência com ética. Enfim, a possibilidade de uma racionalidade ética se coloca como questão fundamental também neste momento, não como um “post factum” ou “post festum”, mas como processo presente e constitutivo da travessia em curso.
O momento exige a mobilização das diversas racionalidades e das diversas sensibilidades humanas, sobretudo aquelas críticas e reflexivas. Sem elas dificilmente faremos a travessia, ainda que considerando a grande incerteza que a caracteriza. Não é momento para privilegiar uma ou outra expressão da criatividade humana. Abrir mão da crítica reflexiva poderia comprometer a humanidade senão mais, ao menos tanto quanto qualquer pandemia física.
Precisamos de pessoas para testar pessoas: fato?
A ciência evolui enquanto a natureza respira em função da pandemia.