Essa profissão humanizante e humanizadora que percorreu os séculos, em nosso tempo é frequentemente maltratada, perseguida, injuriada, precarizada. Apesar de tudo isso, milhares de homens e mulheres persistem a acreditam no valor de educar.
A motivação principal deste escrito é divulgar a belíssima coletânea Ética e Docência, organizada pelos professores Angelo Vitório Cenci, Andrei Luiz Lodéa, Bruna de Oliveira Bortolini e Patrícia Carlesso Marcelino (2024) que acaba de sair pela Editora da UPF. Trata-se de uma publicação que trata de um tema central para os desafios educacionais contemporâneos. Conforme os organizadores escrevem na apresentação, “a docência é uma profissão, mas também é um ofício. Ela necessita de uma esmerada formação intelectual, pedagógica e metodológica, mas também de saberes práticos adquiridos mediante experiência, tato pedagógico e criatividade” (p.7).
I
Essa profissão humanizante e humanizadora que percorreu os séculos, em nosso tempo é frequentemente maltratada, perseguida, injuriada, precarizada. Não por todos, certamente, e nem sempre de forma pública, mas na sutileza das sombras, no anonimato das ações tácitas, no submundo das redes sociais, nos discursos de ódio de uma extrema direita ressentida, na idolatria dos que colocaram o deus mercado no altar dos sacrifícios da vida humana e no uso instrumental da natureza; por estes a profissão docente é frequentemente hostilizada.
Professores e professoras, principalmente os que advogam um pensamento crítico e reflexivo em suas práticas docentes, são frequentemente acusados de serem doutrinadores, comunistas, insolentes, perturbadores do progresso econômico e responsáveis pelo fracasso da educação. Apesar de tudo isso, milhares de homens e mulheres persistem a acreditam no valor de educar.
Em seu belo livro O valor de educar, o filósofo e educador espanhol, Fernando Savater, diz que “[…] em qualquer educação, por pior que seja, há suficientes aspectos positivos para despertar em quem a recebeu o desejo de fazer melhor com aqueles pelos quais depois será responsável” (Savater, 2000, p. 17). Tal perspectiva nos tutela, acompanhando as reflexões anteriores, o desafio de pensarmos e estruturarmos processos educativos para que as futuras gerações possam ser melhores que a nossa geração ou a geração que nos precedeu. Mas como realizar tal façanha? De que forma é possível pensar e projetar um processo educativo que seja suficientemente eficaz para dar conta das crises e demandas educacionais atuais?
A educação deve preparar pessoas para competir na sociedade do mercado ou deve formar seres humanos completos? Deve doutrinar ou educar para a autonomia? Deve focar-se e concentrar suas energias no repasse de informações e na instrução eficiente ou no árduo e complexo processo de produção de conhecimentos e na construção de cidadãos? Deve preparar para um emprego ou preparar para a vida? Deve manter uma “neutralidade aparente” diante da pluralidade de opções ideológicas, religiosas, políticas e tantas outras formas de vida, ou deve inclinar-se por debater sobre o preferível e propor modos de vida mais confiáveis?
No bojo de todas essas questões e tantas outras que poderiam ser apresentadas, ainda cabe perguntar: é obrigatório educar todo mundo da mesma maneira ou deve haver tipos diferentes de educação, isto é, conforme a clientela a que sejam dirigidos? A obrigação de educar é assunto público ou questão privada de cada um? Por que a educação carrega em si, no seu modo de ser planejada e exercida, uma dimensão existencial, antropológica, ontológica, epistemológica, política e ética?
“Ninguém escapa da educação”, afirmava o saudoso Carlos Rodrigues Brandão (1986, p. 7), em seu consagrado livro introdutório O que é educação. Em qualquer lugar que estamos, na rua, em casa, na escola, nas situações mais inusitadas, diante da televisão, quando conversamos com outras pessoas, lemos um jornal, um livro ou qualquer outro tipo de informativo, ou quando compartilhamos nas redes sociais informações ou curiosidades: todos nós estamos envolvidos com a educação para aprender, ensinar, socializar, construir, dinamizar, fazer, conviver, revitalizar nossa própria existência. “A educação invade nossa vida e nossa vida é misturada com a educação”, ressaltam Fávero e Tonieto (2010, p. 14), pois “[…] não há uma forma única de educação e ela não se realiza apenas em locais formais”.
Em cada cultura, em cada época, em cada espaço, há traços educativos que se traduzem em formas de vida de indivíduos, grupos e comunidades inteiras e é por isso que “ninguém escapa da educação”. Mas essa condição se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais seres vivos?
Nas pesquisas e escritos de diversos cientistas e pensadores contemporâneos, não há dúvida de que em todos os seres vivos existe uma relação entre o viver e o conhecer. As teorias atuais que tratam dos sistemas complexos auto-organizativos e autopoiéticos indicam o profundo vínculo que existe entre o viver e o conhecer. Para essas teorias, as interações de um organismo vivo com o seu meio ambiente são vistas como interações cognitivas, de modo que há, portanto, uma identificação entre o processo de vida e o processo do conhecer. Humberto Maturana e Francisco Varela (2001, p. 194), em seu livro A árvore do conhecimento, destacam que “[…] toda interação de um organismo, toda conduta observada, pode ser avaliada por um observador como um ato cognitivo”. Sendo assim, “[…] o fato de viver – de conservar ininterruptamente o acoplamento estrutural como ser vivo – corresponde a conhecer no âmbito do existir”.
Dizendo de modo aforístico: “viver é conhecer” (viver é ação efetiva no existir como ser vivo). É com base nessa relação autopoiética da vida e com conhecimento que podemos responder à pergunta: como surge a ética? De acordo com Maturana e Varela (1995, p. 262), a ética surge da consciência da estrutura biológica e social dos seres humanos, que brota da reflexão humana e a coloca no centro como fenômeno social constitutivo. E como toda a ação humana sempre acontece na linguagem, assim, também, todo ato linguístico produz o mundo que criamos com os outros nos atos de convivência que dão origem ao humano: por isso, todo ato humano traz consigo um sentido ético. Esse vínculo entre humanos é o fundamento de toda ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro.
Em Sem fins lucrativos (2019), a filósofa Martha Nussbaum argumenta que se tornou urgente nos preocuparmos com a diferença de perspectiva de uma educação baseada no modelo utilitarista — que aceita e propaga a ideia do crescimento econômico e que impõe, também, ao sistema escolar e universitário, um sistema de avaliação quantitativa de produtividade —, e uma formação que se oriente pelo modelo do desenvolvimento humano, no qual são fomentadas e preservadas as condições para a criação de capacidades que permitam a constituição de uma sociedade democrática e de uma cidadania global.
Mais recentemente, Nussbaum (2022) também dedicou um livro à questão da ética para com os animais, indicando a necessidade de incluir, na mudança paradigmática necessária à educação do nosso tempo, a consideração da nossa responsabilidade em relação às diferentes formas de vida. Estamos aqui, portanto, no centro de nossas indagações sobre as relações entre os pressupostos éticos e epistemológicos da atividade docente, para a qual é preciso ter sempre presente o caráter relacional que nos vincula aos outros e ao mundo.
É notório, a partir das posições defendidas por essas teorias e por esses autores, que “viver é conhecer” e que “[…] o processo de cognição tem a ver com a conduta efetiva ou adequada de um organismo vivo em um contexto relacional” (Fávero; Tonieto, 2010, p.15). No entanto, permanece a questão anteriormente formulada: a inevitabilidade do processo educativo se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais seres vivos?
Ou ainda, qual é a forma especificamente humana de cognição que diferencia o ser humano de outros animais superiores? Em seu livro Educar para reencantar a vida, o teólogo e economista Jung Mo Sung (2006, p. 27-28) responde a essa segunda pergunta da seguinte maneira: “[…] o único mecanismo biológico capaz de gerar esse tipo de mudança no comportamento e na cognição […] é a transmissão social ou cultural que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da evolução orgânica”.
A resposta formulada por Jung Mo Sung está ancorada em diversos autores os quais defendem a tese de que, na espécie humana, há um processo de transmissão e de aprendizagem cultural que se diferencia de outras espécies.
Baseado em seus estudos Sung (2006) identifica três tipos básicos de aprendizagem cultural humana: a) aprendizagem por imitação; b) aprendizagem por instrução; c) aprendizagem por colaboração. Esses três tipos de aprendizagem só são possíveis na espécie humana porque possuímos a “cognição social” que possibilita perceber e compreender os indivíduos pertencentes à mesma espécie como sendo iguais a nós.
Apesar de sermos biologicamente muito semelhantes aos primatas, por exemplo, é o ato de nos identificarmos com outros membros da nossa espécie que possibilita os três tipos de aprendizagem acima indicados. É nesse aspecto que a aprendizagem da linguagem simbólica se torna um divisor de água entre a espécie humana e os outros animais superiores. “O que dá à cognição humana o seu poder único e impressionante em relação aos outros animais”, ressalta Jung Mo Sung (2006, p. 29), “[…] é o fato de usarmos os símbolos linguísticos em interações discursivas onde as diferentes perspectivas de apreensão e compreensão de algum fenômeno possibilitadas por esses símbolos são explicitamente contrastadas e compartilhadas”.
Em seu instigante livro Ensaio sobre o homem, o filósofo contemporâneo Ernst Cassirer (2001, p.50-51) define o ser humano como sendo um animal symbolicum, pois, para ele, a razão é um termo muito inadequado para compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. “É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico estão entre os traços mais característicos da vida humana, e que todo o progresso da cultura humana está baseado nessas condições”.
Os animais também são suscetíveis de comportamentos simbólicos e os cientistas estão convencidos de que o problema da linguagem animal é algo que merece nossa atenção e cuidado. No entanto, ressalta Cassirer (2001, p. 54-59), é necessário distinguir “[…] as camadas geológicas da fala” que possibilitam distinguir a linguagem humana da linguagem animal, ou seja, “[…] a diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emocional é a verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo animal” (grifos do autor). A linguagem proposicional é o grande distintivo da linguagem humana. Da mesma forma, há uma distinção entre sinais e símbolos: “[…] um sinal faz parte do mundo físico; um símbolo é parte do mundo humano do significado” (Cassirer, 2001, p. 54-59).
As reflexões de Cassirer nos ajudam a retomar a pergunta que foi indicada anteriormente: a educação se restringe aos seres humanos ou se estende aos demais animais superiores?
Acreditamos que as considerações acima expostas são, provisoriamente, suficientes para respondermos afirmativamente: a educação é uma particularidade humana e nos tornamos humanos pelos processos educativos que acontecem em nossa vida. Isso implica em dizer que a humanização não é um processo natural, mas que nos tornamos humanos na medida que participamos de uma comunidade que possui regras, linguagem e cultura. É neste sentido que Jung Mo Sung (2006, p. 35) diz que “[…] nós seres humanos somos de certa maneira ‘animais desnaturados’”, pois, mesmo sendo nosso ponto de partida natural, “[…] nossa espécie foi enxertada de certos processos biológicos” que foram se adaptando pelas necessidades (a posição do pé, o dedo polegar oposto a outros quatro dedos, o deslocamento do cérebro etc.) e “[…] de processos históricos e sociais que nos possibilitaram a habitar o universo da cultura”. Sendo assim, nós “[…] não habitamos mais apenas o mundo dos fatos, mas o mundo dos signos e dos sentidos” (Sung, 2006, p. 35).
O fato do ser humano habitar o mundo dos signos e dos sentidos requer um constante processo educativo e é por isso que a escola surge como uma das mais importantes instituições historicamente criadas para socializar os saberes culturais e, com isso, possibilitar o processo de humanização das futuras gerações.
Certamente, a escola foi uma das principais invenções que contribuiu de forma singular para o aprimoramento cultural da espécie humana e para o avanço do conhecimento. Não teríamos evoluído, em termos de civilização, e não teríamos atingido o estágio atual das modernas tecnologias sem a presença marcante da escola. No entanto, em um cenário de transformações rápidas e profundas, ocasionadas pelas tecnologias da informação e comunicação, associamo-nos às reflexões de Charlot (2019, p.161), quando diz que hoje, observa-se “[…] uma indeterminação crescente quanto à definição do que é um ser humano” e, por isso, um dos desafios fundamentais à educação diz respeito à questão antropolítica. Nesse cenário, a própria escola pública vê-se atacada, de todas as formas, com acusações, demandas e questionamentos que abalam suas estruturas e sua própria identidade, que fragilizam seus sujeitos (professores, alunos e gestores), de modo a confundir suas funções e sua relevância social em um mundo cada vez tecnificado e mercantilizado.
São imensos os desafios do tempo presente, pois envolvem situações complexas, problemas profundos, dilemas gigantescos, ações coletivas que ultrapassam as particularidades locais ou regionais. Tais desafios não podem ser enfrentados apenas com discursos ou com decretos, não serão contornados se não existir uma consciência coletiva cidadã que seja capaz de produzir uma responsabilidade solidária e ética que nos ajude a ver para além dos interesses imediatos econômicos. Tal consciência requer uma atitude ética educacional do conjunto da sociedade. Teremos coragem de dar esse passo?
Parte das ideias que foram esboçadas acima estão também desenvolvidas no capítulo que escrevi com grande amigo Luiz Carlos Bombassaro (Professor da UFRGS). A coletânea completa onde está publicado o capítulo pode ser acessada no seguinte link: https://www.researchgate.net/publication/380404922_Etica_e_docencia_VI_ebook_2024
Referências:
BECKER, Fernando. A epistemologia do professor😮 cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 1993.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da Epistemologia. Como se produz o conhecimento. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CENCI, Angelo Vitório; LODÉA, Andrei Luiz; BORTOLINI, Bruna de Oliveira; MARCELINO, Patrícia Carlesso (orgs.). Ética e Docência. Passo Fundo: Editora UPF, 2024.
CHARLOT, Bernard. A questão antropológica na educação quando o tempo da barbárie está de volta. Educar em Revista, Curitiba, v. 35, n. 73, p. 161-180, jan./fev., 2019.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. Educar o educador:reflexões sobre docente. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. O lugar da teoria na pesquisa sobre a docência no Ensino Superior. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina (Orgs.). Epistemologias da docência universitária. Curitiba: CRV, 2016. pp. 31-49.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; POSSEL, Bianca. A resolução de problemas como prática interdisciplinar: uma proposta epistemetodológica. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (Orgs.). Interdisciplinaridade e formação docente.Curitiba: CRV, 2018. pp. 89-102.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon (Orgs.) Leituras sobre Martha Nussbaum e a Educação. Curitiba: CRV, 2021.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento:as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
NUSSBAUM, Martha. Justice for animals. Our Collective Responsibility. New York: Simon & Schuster, 2022.
SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida. Petrópolis: Vozes, 2006.
Autor: Dr. Altair Alberto Fávero. Também escreveu e publicou “O modelo de mensuração educacional e o desaparecimento da formação”: https://www.neipies.com/o-modelo-de-mensuracao-educacional-e-o-desaparecimento-da-formacao/
Edição: A. R.