Eu errei. Errei ao atender desatento aquele telefonema

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Me dou conta de que o título da crônica deveria ser outro: “Até onde algo que você julga que errou irá te seguir?” No meu caso, até hoje. Caso contrário, não teria me lembrado dele. E quem sabe não teria feito o roteiro do filme que tem como título: “Por uma alegre meia tarde”. E como subtítulo: “Até onde você iria para reparar um erro?”

Há muitos anos, quando o tratamento da esquizofrenia não tivera os avanços que tem hoje, me telefonou alguém se apresentando como delegado na cidade de São Paulo. Por azar, minha secretária havia faltado, na sala de espera havia pacientes e familiares de pacientes que vieram à minha procura sem marcar hora, e eu atendia uma paciente com risco grave de suicídio. Tinha tudo para dar errado – e deu.

O telefone tocou com insistência e eu tive que interromper a consulta para fazer silenciar aquele som estridente que me impedia de manter a atenção no relato da paciente.
“Eu sou delegado e estou com um rapaz na minha frente que estava com comportamento maluco na rua. Ele tem seu telefone num papel amassado no bolso. Diz se chamar… O senhor o conhece?”

Eu pensei rapidamente, meus olhos estavam na paciente sentada a minha frente, não me veio nada. Minha atenção não estava no telefone. “Não estou lembrando”. O Delegado desligou.

A mãe do rapaz levou uma semana para localizá-lo, preso em São Paulo, e liberá-lo mediante um atestado meu. Na época, pacientes com esquizofrenia tendiam a abandonar a medicação, elas tinham muitos efeitos colaterais, pioravam, e a família custava a fazê-los voltar ao tratamento. Não era incomum, em surtos, o paciente sumir. Fugir de casa, ir embora sem saber para onde ia. Eu insistia para que eles andassem com um papel com o meu telefone.

Não via o rapaz há muito, e isso ajudou a eu não me lembrar dele. Mais o atrapalho do momento… Não importa, o fato é que, se eu tivesse me concentrado na fala do delegado e pedido mais detalhes, eu lembraria. Ele, provavelmente, não ficaria na cadeia, e a mãe não teria de procurá-lo numa cidade enorme e desconhecida para ela por uma semana.
Colegas me disseram que talvez fosse pior se eu dissesse que o conhecia, que havia sido meu paciente e que sofria de esquizofrenia: seria internado num manicômio judiciário e custaria muito mais tempo para voltar para casa. Não importa. O fato é que tenho a convicção de que errei. Errei mesmo.

Tentei reparar atendendo-o de graça até o momento em que a família mudou de cidade. E mais: passei a atender a todos os telefonemas com bastante atenção.
Na época, não havia celular. Na minha casa, por exemplo, havia um telefone fixo que tocava para mim, para minha mulher e para meus dois filhos adolescentes. Sabe aquele jogo de empurra? Sempre alguém meio brincando afirmava: “Não é pra mim!” Era necessário largar o que se estava fazendo e correr até o telefone. Ele já estava quase parando de tocar…

Bem, a partir daquele dia, para satisfação da família, tocava o telefone e eu corria a atender. E mais ainda: dava muita atenção ao que falavam do “outro lado da linha”, inclusive para os trotes. Na época, havia muitos trotes.

Me dou conta de que o título da crônica deveria ser outro: “Até onde algo que você julga que errou irá te seguir?” No meu caso, até hoje. Caso contrário, não teria me lembrado dele. E quem sabe não teria feito o roteiro do filme que tem como título: “Por uma alegre meia tarde”. E como subtítulo: “Até onde você iria para reparar um erro?”

Trata-se de DRAMA: “Para reparar erro, principio que sempre defendeu, médico teria de abrir mão de outro: sempre agir dentro da lei e da ética”. De 21 a 26 outubro de 2024, 19:30 Passo Fundo Shopping. Ingressos na bilheteria ou pelo site do CINELASER: https://lasercinemas.com.br/programacao/

Autor: Jorge Alberto Salton. Também escreveu e publicou no site crônica sobre outro filme de sua direção “A história de nós três e de nós quatro”: https://www.neipies.com/desculpe-tocar-no-assunto/

Edição: A. R.

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