Aumento de diagnósticos de transtornos psiquiátricos
e uso massivo de medicamentos ameaçam
autonomia e direito à singularidade.
Até os 13 anos, a adolescente Laura Delano era exatamente como esperavam que ela fosse na cidade de Greenwich, parte do estado norte-americano de Connecticut, uma das mais ricas da região metropolitana de Nova Iorque. Na escola particular apenas para meninas que frequentava, ela se encaixava bem, apesar de se sentir diferente das colegas. Usava boné de beisebol em vez de cabelos longos escovados, jogava hóquei com os meninos, mas mantinha boas notas e era respeitada pela comunidade. “Havia muita expectativa, muita pressão sobre nós, mesmo que não comunicada verbalmente”, lembra ela. “Todas fomos nascidas e criadas para sermos perfeitas”.
Em uma noite comum, mas que ficou gravada na memória, Laura se observou mais profundamente no espelho enquanto escovava os dentes para dormir e acabou perdendo o “senso de si”, como ela mesma descreve. “Eu olhava para o meu rosto mas via uma pessoa estranha”. Sem ter tido acesso anterior a um arcabouço de informações que a ajudassem a dar sentido àquela experiência, Laura se comparou a uma atriz. Decidiu continuar “interpretando” o papel de boa filha, boa aluna e boa atleta. “Eu me sentia manipulada pelos meus pais, pelos outros alunos, pelos professores, pela cidade, pela sociedade americana a alimentar uma certa ilusão”.
Eventualmente, o pano caiu. Laura passou a se comportar mal em casa. Gritava, falava palavrões, batia as portas. Depois, começou a se automutilar e pensar na morte. “Eu me transformei em uma pessoa muito raivosa e descontrolada. Não enxergava significado na minha existência e não sabia comunicar isso às pessoas”. Seus pais então a levaram pela primeira vez a um profissional de saúde mental. O psiquiatra identificou que sua raiva e irritabilidade eram sintomas de mania e o desespero e os pensamentos suicidas eram sintomas de depressão — ambas fases de transtorno bipolar. “Aquele diagnóstico mudou a minha vida”.
Laura hoje viaja o mundo contando esse episódio para explicar os efeitos da padronização, patologização e medicalização da vida. Esteve no Brasil entre os dias 30 de outubro e 1º de novembro para participar do seminário “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas: Causas, Danos e Alternativas”, realizado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no Rio de Janeiro. Ela está há sete anos sem tomar nenhum dos 19 medicamentos prescritos para os vários transtornos mentais “incuráveis”, diagnosticados ao longo de sua jornada pelo sistema de saúde mental norte-americano.
“Não estou aqui para dizer que médicos psiquiatras ou medicamentos são maus, mas para dizer que a sociedade está construída em cima de histórias poderosas que moldam o sentido da nossa existência — e algumas dessas histórias estão nos ferindo”, ressalva. “Acredito que meu colapso teve a ver com o contexto da minha vida. A pergunta certa não é ‘o que há de errado comigo’ e sim ‘o que aconteceu comigo?’”.
Dentro da caixa
Tentar encaixar pessoas e comportamentos em um padrão está na origem da patologização, segundo o jornalista Robert Whitaker, autor de “Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso de doença mental” (Editora Fiocruz), também presente no evento. Ele aponta que o aumento do diagnóstico de transtornos e do uso de drogas psiquiátricas não levou a uma redução do “fardo” das doenças mentais, mas sim ao seu crescimento dramático. “No passado, crianças consideradas ‘difíceis’ eram parte da vida. Crescer é difícil, afinal. Agora temos um novo padrão, em que todos temos que estar felizes o tempo todo”.
Uma em cada 50 crianças nos Estados Unidos é diagnosticada com bipolaridade, informa. O Brasil não fica muito atrás: é o segundo país que mais consome metilfenidato, o princípio ativo da ritalina (medicamento usado para tratar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ou TDAH), segundo o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos. “Estabeleceram uma relação entre ‘doença’ e o ‘não aprender’, a ‘doença do não aprender’, um olhar que busca a homogeneidade e rejeita a diferença”, avalia a secretária executiva do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Helena Monteiro, para quem a escola é a principal demandante da padronização na infância.
Como resumiu Whitaker em seu livro, em 1980, a American Psychiatric Association (APA) adotou um “modelo de doença” para categorizar transtornos mentais — e esse modelo foi exportado para o Brasil e para grande parte do mundo. “O público passou a ser ensinado que depressão, ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e esquizofrenia eram doenças do cérebro, causadas por desequilíbrios químicos, e que uma nova geração de drogas psiquiátricas havia sido desenvolvida para corrigi-los”.
Whitaker mostra recentes pesquisas da própria literatura mundialmente reconhecida em Psiquiatria que contradizem esses paradigmas. Além de não diminuir a carga epidemiológica das doenças, o uso contínuo de medicamentos de efeito no sistema nervoso provoca piora de cada uma das doenças em questão. Pacientes com diagnósticos brandos que tinham um bom prognóstico (chances de evoluir para uma melhora e desaparecimento dos sintomas) e que tomaram remédios se saíram pior do que os com diagnóstico severo mas que não usaram as drogas no longo prazo. “Trata-se de surto iatrogênico [termo que quer dizer dano causado pelo tratamento]”, observa.
O autor procura mostrar como, embora os medicamentos psiquiátricos possam aliviar os sintomas no curto prazo (melhor que o placebo), em longo prazo aumentam o risco de uma pessoa se tornar cronicamente doente e prejudicada funcionalmente. “A literatura mais recente argumenta a favor de se repensar profundamente o uso de drogas psiquiátricas, com a defesa de que elas precisam ser indicadas com muita cautela, e que devem ser criados modos alternativos de tratamento”.
O número de pessoas declaradas incapacitadas de trabalhar devido a transtornos mentais aumentou quatro vezes nos Estados Unidos nos últimos 30 anos, e esse aumento tem sido observado em muitos outros países que adotaram o mesmo paradigma de assistência. Quatro milhões de adultos norte-americanos com menos de 65 anos recebem auxílio do sistema de Seguridade Social por serem considerados incapacitados por questões mentais. Um em cada 15 adultos jovens entre 18 e 26 anos encontra-se “funcionalmente prejudicado” por esses transtornos.
Epidemia
O jornalista denuncia que existe uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais. “Há crianças de dois anos sendo ´tratadas´ nos Estados Unidos por bipolaridade, por exemplo”, observa. Os diagnósticos em crianças cresceram pari passu com a prescrição de estimulantes e antidepressivos, com objetivo de conter sintomas como os de TDAH. O papel das indústrias e do marketing de remédio é um dos aspectos cruciais da questão, avalia.
“As companhias farmacêuticas se encaixam no mercado. As sociedades pagam a conta coletivamente. Uma das razões para discutirmos esse tema é que as sociedades não têm mais como sustentar cada vez mais pessoas se incapacitando por depressão e outras doenças mentais”, diz ele, para quem a solução passa por diferentes caminhos muito distantes das pílulas mágicas. “O que ajuda realmente as pessoas a melhorarem são diferentes variáveis, como a confiança para retornar à sociedade, e construir pontes para se manter em contato com a sociedade e a família”.
Whitaker entrevistou pessoas cujas vidas foram mudadas — indubitavelmente para pior — depois que tiveram medicamentos receitados para elas. Em um dos vários casos dramáticos relatados no livro, a mãe de uma criança totalmente saudável de 11 anos procurou ajuda médica: a filha, que esporadicamente fazia xixi na cama, gostaria de participar de uma viagem da escola com seus amigos, e ela estava preocupada. O profissional receitou para a criança um antidepressivo tricíclico “para o xixi na cama”. Dali para diante, efeitos e sintomas devastadores surgiram e a vida da menina tornou-se uma constante peregrinação por médicos e hospitais psiquiátricos. Quando o autor encontrou a família, anos mais tarde, a jovem não tinha sequer no horizonte a perspectiva de retornar a ser uma pessoa alegre, independente e funcional, e só sua mãe falava por ela.
Cuidado x controle
Durante sua jornada para dentro do sistema de saúde mental norte-americano, Laura chegou a confiar que o diagnóstico de transtornos mentais traria alívio para sua falta de conexão com a vida: “Em algum momento quis acreditar que minhas questões eram causadas por um desequilíbrio químico que seria corrigido pelos medicamentos e pela terapia”. Mas conta que, mesmo sendo uma “paciente obediente”, sua vida desmoronou progressivamente. Ela pouco se lembra, por exemplo, de seus anos de graduação na Universidade Harvard, uma das mais prestigiadas do mundo. “Eu estava sedada a maior parte do tempo. Ao lutar para manter boas notas, perdi tudo mais — minha saúde, a capacidade de manter relacionamentos e de reter informação, minha sexualidade, qualquer senso de propósito ou direção”. Tentou se suicidar.
Foi internada, onde diz que conheceu de fato a força do sistema de saúde mental sobre os direitos humanos. “Não há muita coisa pior do que estar em uma ala psiquiátrica de segurança, sem nada que pareça familiar, sem suas coisas, sem poder dar opinião sobre sua vida”. Sua existência, avalia ela hoje, foi sobrepujada pelo seu diagnóstico. “Experimentei violações profundas. Fui percebendo que todos esses anos em que tentei ser ‘obediente’ tinham me privado da minha integridade corporal, da minha liberdade de expressão, de ar puro. Não se tratava de cuidado, mas de controle”.
Ao ler o livro de Whitaker, em 2010, começou a refletir sobre quem era. Botou em xeque todos os diagnósticos que recebeu e procurou alternativas holísticas para entender de onde vinha seu sofrimento. “Finalmente entendi que as experiências emocionais com que lidei ao longo dos anos tinham significado, tinham razão política, estavam enraizadas em questões sociais, culturais, de gênero”. Laura hoje escreve um blog (recoveringfrompsychiatry.com) em que tenta “ressignificar” sua vida. “A Psiquiatria dizia quem eu era. Eu mesma passei a dizer, em um processo confuso, mas empoderador”.
Abordagens desmedicalizantes
Abordagens que estimulam o diálogo e autonomia dos pacientes são a “tecnologia” de ponta em tratamento do sofrimento psíquico. O finlandês Jaakko Seikkula ajudou a desenvolver a abordagem Diálogo Aberto (Open Dialogue). Trata-se de um método elaborado a partir de terapias centradas nas necessidades de cada pessoa e seu meio social, com a integração da terapia familiar sistêmica e da psicoterapia psicodinâmica. A abordagem é utilizada na Finlândia inclusive para casos considerados graves e nos momentos de surtos (ver entrevista na pág. 22). “Aceitar o outro sem condições é o caminho de ouro para abrir diálogos nas relações sociais que se encontram em crises severas”, diz Jaakko.
Para ele, no sistema de cuidados predominante, os profissionais são orientados a seguir sua via de tratamento dentro de categorias de diagnóstico específicas, mas respeitar as vozes dos pacientes não é objetivo básico. “Infelizmente, a prática hegemônica muitas vezes desrespeita os recursos psicológicos dos usuários e, portanto, enfatiza a prática fortemente centrada no chamado expert. O tratamento é direcionado aos sintomas”, aponta.
Nas crises graves, outro tipo de abordagem é imprescindível, afirma. Os princípios centrais da abordagem do Diálogo Aberto são: ajuda imediata (dentro de 24 horas); uma perspectiva de rede social (sempre convidando os parentes, familiares e outros membros chaves da sua rede social para as reuniões); flexibilidade e mobilidade (adapta o tratamento oferecido para a especificidade e as necessidades de cada caso); responsabilidade da equipe (quem quer que esteja na equipe é responsável por reunir a rede); continuidade psicológica (a equipe se torna responsável pelo tratamento pelo tempo que seja necessário); tolerância à incerteza (criando segurança e confiança em situações onde ninguém tem a resposta definitiva); dialogicidade (focando principalmente no diálogo, deixando em segundo plano querer mudar o outro).
“As pessoas são abordadas como seres humanos em sua plenitude, e não como sintomas”. Conforme observado em estudos, nos casos de psicose em primeiro episódio, 85% podem retornar ao pleno emprego. Nos casos de depressão profunda, a recuperação ocorre mais rápida e mais frequentemente, em comparação com o tratamento habitual. Em ambos, o papel da medicação pode ser reduzido, evitando assim seu efeito nocivo.
O papel do Brasil, segundo Whitaker, é muito relevante para que a reversão do modelo de cuidado tenha êxito global, levando em consideração as suas conquistas na Reforma Psiquiátrica. “Precisamos nos informar na literatura científica acerca de resultados a longo prazo. Em outras palavras, precisamos ter uma discussão científica honesta. Se pudermos ter essa discussão, uma mudança certamente se seguirá. Nossa sociedade se disporia a abraçar e promover formas alternativas de tratamento não medicamentosos. Os médicos receitariam os remédios de maneira muito mais restrita e cautelosa. Em suma, nossa ilusão social sobre uma revolução da ´psicofarmacologia´ poderia enfim se dissipar e a ciência de bases sólidas poderia iluminar o caminho para um futuro muito melhor”, defende.
Autor: Bruno Dominguez e Elisa Batalha
Fonte: Radis