Formação para dar sentido à vida

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Se hoje temos crianças e jovens que desdenham a escola, que julgam desnecessário se apropriar dos fundamentos culturais que constituíram nossa civilização, isso se deve, em grande parte, a terem sido contaminados com a cultura do tédio e da violência da positividade que tomou conta, inclusive, do ambiente escolar.

O enfrentamento da cultura do tédio não ocorre como um ato isolado, desconectado de um conjunto de ações que devem acontecer organicamente no processo formativo dos que compartilham o espaço escolar. Seria ingenuidade pensar que a simples introdução de atividades isoladas no cotidiano escolar seria suficiente para superar a cultura do tédio, neutralizar a “violência da positividade” e instaurar a cultura do sentido. No entanto, a identificação da violência da positividade e a reflexão sobre a cultura do tédio inserida como exercício pedagógico permanente, com professores altamente capacitados e comprometidos em promover e implantar a “cultura do sentido”, poderá se tornar um importante veículo para enfrentar os dilemas educacionais da contemporaneidade.

Em que aspectos a reflexão sobre a cultura do tédio e a identificação da violência da positividade poderão contribuir para instaurar a cultura do sentido? Indicaremos alguns elementos que poderão ser explorados nessa direção:

Fornecer ferramentas intelectuais para examinar a vida: é do conhecimento de todos nós o famoso pronunciamento de Sócrates em sua defesa, diante do tribunal hostil de Atenas, ao dizer aos seus acusadores, “[…] que vida sem exame não é vida digna de um ser humano.” (Sócrates, 1985, p. 22). Nada mais apropriado para pensar a presença da cultura do sentido como algo indispensável no processo formativo.

O apelo de Sócrates feito há mais de 25 séculos se reatualiza num cenário marcado pela não reflexão, pelo excesso de consumo, pela “vida pequena” que tomou conta da sociedade atual. Ausência de reflexão se traduz em violência da positividade que toma conta da vida. A promoção da Cultura do Sentido pode se tornar potencialmente produtiva para fornecer ferramentas intelectuais que sejam capazes de enfrentar a cultura do tédio. Como diz La Taille (2009, p. 101), “[…] de nada adianta ser capaz de raciocinar bem, mas não possuir conhecimentos que alimentam a reflexão. Mas tampouco adianta possuí-los sem ser capaz de organizá-los de forma a chegar a diversas conclusões.”

Dito de outro modo, pensar uma cultura do sentido nos processos formativos que tenha por objetivo superar a cultura do tédio implica articular competentemente conteúdo e método. No capítulo 3 do livro Educar o educador, Fávero e Tonieto (2010, p. 49-54) analisam como se realiza a relação entre conteúdo e método na formação de professores e avaliam como tal relação influencia de forma direta o trabalho desenvolvido pelos professores no exercício profissional da docência. Eles defendem a tese de que o modo como se compreende a relação entre conteúdo e método determina o modo como são pensados os cursos de formação de professores e o modo como o professor organiza sua prática pedagógica.

Criar espaços para a prática de virtudes que possibilitem a construção de significações para a vida: La Taille (2009, p. 106) indica que algumas virtudes são essenciais e devem ser cultivadas para que ocorra a construção de significações para a vida. A boa-fé, por exemplo, é uma virtude moral, pois corresponde, no dizer do filósofo francês André Comte-Sponville (1995, p. 259), a “[…] amar a verdade mais que a si mesmo.” Uma pessoa de boa-fé é aquela que não mente e se sente desconfortável se aquilo que está dizendo não está de acordo com a verdade. É por isso que, para La Taille (2009, p. 107), “[…] a boa-fé é virtude incontornável para a construção de uma ‘cultura do sentido’.”

Como já dizia Aristóteles, as virtudes não são talentos inatos ou traços que herdamos geneticamente. No dizer de La Taille (2009, p. 101, grifo do autor), “[…] virtudes são qualidades de caráter decorrentes de um trabalho de autoaperfeiçoamento […]” e estão “[…] ao alcance de cada um, contanto que os esforços necessários sejam envidados.”

Acreditamos que a prática da Cultura do Sentido possibilita que o processo formativo seja um espaço de experiência da boa-fé, e a escola, um lugar para a prática da virtude e para o enfrentamento da violência da positividade.

O tempo como fluxo de direção e sentido à vida: com frequência escutamos a famosa máxima “tempo é dinheiro”, que marcou não só a sociedade moderna do capitalismo industrial, mas também nosso estilo de vida. Vivemos o tempo cronometrado, o tempo calculado em dinheiro, o tempo escasso, o tempo negociado, a vida sem tempo. É essa “vida sem tempo” que hoje está em crise. Em seu livro A crise do século XX, Gilberto de Mello Kujawski (1988) diz que a crise que vivemos hoje não é algo distante e abstrato, identificável apenas com herméticas especulações filosóficas, mas se manifesta nas situações de desconforto que ocupam o mais prosaico cotidiano. Nas palavras de Han (2016, p. 112), trata-se da microfísica da violência que “[…] destrói toda a possibilidade de ação e atividade. Suas vítimas são jogadas em uma passividade radical. A destrutividade da violência microfísica, tem sua origem no excesso de atividade que se manifesta como hiperatividade.” O excesso de tudo gera a crise de sentido e a violência da positividade.

De acordo com Kujawski (1988, p. 54), “[…] a compreensão da crise do século XX tem que começar por onde nós vivemos, na deterioração do cotidiano […]” Podemos dizer que uma das crises do nosso cotidiano é a deterioração do fluxo do tempo. Em resumo, diz La Taille (2009, p. 115), “[…] cortamos o tempo em fatias, e nosso presente não se liga ao nosso passado e tampouco a nosso futuro.” Em outras palavras, “vivemos no eterno presente”, “estancamos simbolicamente o fluxo do tempo” e, com isso, “penamos em atribuir sentido à vida”. Pensar sobre o tempo, identificar os motivos da eternização do tempo, compreender a crise do tempo que produz a cultura do tédio pode se tornar objeto de investigação para um bom exercício da constituição da cultura do sentido.

 

Tornar o tempo de formação um espaço de apropriação dos valores culturais: não precisamos fazer grandes estudos para constatar que nosso modelo societário é essencialmente tecnocrata, esquecido, ou simplesmente desinteressado, de grande parte dos valores que foram decisivos na constituição de nossa civilização. Foram esses valores que constituíram a base dos conhecimentos necessários à ideia que se tinha então do que deveria ser a cultura. No entanto, apesar de tantas conquistas, inovações e invenções produzidas, vivemos hoje à deriva de “[…] um mundo saído dos seus eixos […]” (Hermenau, 2003, p. 84).

No Brasil, nunca tivemos tantas crianças e jovens na escola; no entanto, estamos dramaticamente mergulhados numa cultura do tédio, que produz evasão escolar, violência, reprovação, patologias, mal-estar docente, estresse, depressão, ansiedade, apatia e embrutecimento cultural.

Tornar o tempo escolar um espaço de apropriação dos valores culturais significa fazer da escola um lugar onde as crianças e os jovens possam compor sua bagagem intelectual, ou seja, apropriar-se daquilo que a humanidade produziu ao longo dos séculos. Trata-se de um processo de conhecimento dos grandes autores, das grandes obras, das grandes invenções e das grandes descobertas que possibilitam ver o processo evolutivo da sociedade. Não se trata de fazer uma veneração ingênua do passado, mas de auxiliar crianças e jovens a perceberem que há muito mais elementos positivos na história da cultura do que traços destrutivos. La Taille (2009, p. 121-127, grifo do autor) indica três razões que justificam a ideia de que os alunos devem na escola “[…] compor sua bagagem intelectual dando lugar de destaque àquilo de mais rico que a humanidade criou”: i) tornar a memória do passado uma referência importante para perceber o fluxo do tempo; ii) prestar uma homenagem à humanidade; e iii) explicitar a admiração, no sentido de espanto que gera curiosidade e superação. Penso que as três razões indicadas por La Taille estão plenamente relacionadas com o desafio de tornar o saber escolar algo importante e necessário para promover a cultura do sentido.

Se hoje temos crianças e jovens que desdenham a escola, que julgam desnecessário se apropriar dos fundamentos culturais que constituíram nossa civilização, isso se deve, em grande parte, a terem sido contaminados com a cultura do tédio e da violência da positividade que tomou conta, inclusive, do ambiente escolar.

O antídoto para combater esse vírus do tédio e a violência da positividade passa pela instauração do sentido, que é alimentado pela curiosidade e pelo espírito de superação. Penso que a formação de uma cultura do sentido pode ser promissora nessa direção, na medida em que desperta nos estudantes a dimensão problematizadora dos acontecimentos, promove o diálogo investigador e torna o processo de formação um exercício reflexivo sobre a própria vida e a cultura que nos constituiu.

Fazer da educação um processo que dá sentido à vida:em seu belo livro Ética para meu filho, o filósofo e educador espanhol Fenando Savater (2002, p. 97), ao se dirigir ao próprio filho e, por extensão, a todos os jovens do mundo, afirma que a única obrigação que temos nesta vida é “não sermos imbecis”. O próprio Savater esclarece, etimologicamente, que a palavra imbecil significa “bastão”, “bengala”, ou seja, “o imbecil é aquele que precisa de bengala para caminhar.” Tanto a “bengala” quanto “o caminhar” estão sendo usados no sentido metafórico, ou seja, “[…] o imbecil não é manco dos pés, mas do pensamento.”

Savater (2002, p. 97-98) diz que há vários modelos de imbecis: a) “o que acredita que não quer nada” e que para ele “tudo dá na mesma”, por isso boceja frequentemente e vive eternamente cochilando, mesmo estando de “olhos bem abertos”; b) “o que acredita que quer tudo” o que aparece na sua frente e, por isso, agarra coisas opostas sem se dar conta de que existe diferença entre elas; c) “o que não sabe o que quer nem se dá o trabalho de averiguar”, por isso é “conformista sem reflexão” ou “rebelde sem causa”; d) o que sabe que quer e, mais ou menos, sabe porque o quer, mas quer frouxamente, com medo ou com pouca força; e) “o que quer com força e ferocidade, de maneira bárbara”, mas tem pouca sensibilidade em relação à realidade que vive e, por isso, confunde “vida boa com aquilo que o excita.”

Para Savater (2002, p. 99), todas as formas de imbecilidade terminam mal, no sentido de que os imbecis “[…] acabam prejudicando a si mesmos e nunca conseguem viver a vida boa.” Penso que a caracterização da imbecilidade feita por Savater é oportuna para diagnosticar os traços da cultura do tédio que tomou conta da vida do nosso tempo, inclusive no ambiente escolar. Combater a imbecilidade é, certamente, um bom caminho para promover a cultura do sentido. É nesse aspecto que um dos nossos grandes desafios como educadores é fazer da educação um processo que dá sentido à vida, a fim de impedir que a imbecilidade tome conta do mundo, inclusive da escola.

Os elementos indicativos para promover a formação da cultura do sentido não se encerram aqui. Haveria mais de uma centena de elementos que poderiam ser exaustivamente considerados. Elencamos apenas cinco com a finalidade de indicar ações pragmáticas no contexto escolar para o combate à cultura do tédio e promoção da cultura do sentido. Resta saber se, como educadores, temos coragem, persistência, formação e clareza para implementá-las nas nossas práticas pedagógicas.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, A. Tratado das pequenas virtudes.São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HERMENAU, F. No fundo, educamos desde sempre para um mundo saído de seus eixos: sobre a relação entre Política e educação em Immanuel Kant e Hannah Arendt. In: DALBOSCO, C. (Org.). Filosofia prática e pedagogia.Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. p. 84-93.

KUJAWSKI, G. de M. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1988.

LA TAILLE, Y. de. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Porto Alegre: Artmed, 2009.

SAVATER, F. Ética para meu filho.Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SÓCRATES. Defesa de Sócrates.Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

Autor: Altair Alberto Fávero. Professor do Mestrado e Doutorado em Educação. Também escreveu e publicou no site a reflexão “Quando a cultura do tédio toma conta da vida”: www.neipies.com/quando-a-cultura-do-tedio-toma-conta-da-vida/

Edição: A. R.

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