Fratelli tutti: O bom samaritano

1906

A atitude do samaritano, não sendo judeu, considerado impuro por este, é de um poder simbólico absoluto. Fez o bem sem olhar a quem.

Papa Francisco é um raio de luz no meio da escuridão. Mas, o Papa não se vê assim porque, para ele, a luz é Jesus que, com suas palavras e ações, ilumina a realidade sombria em que vivemos, pelo menos na perspectiva da fé.

Do Evangelho de Jesus, o Papa destaca uma parábola que tem a força e brilho de um raio a iluminar a realidade, tanto para os que creem quanto aos homens e mulheres de boa vontade, mesmo os ateus. A parábola é conhecida como o Bom Samaritano. Pela riqueza de detalhes nela contida e pela interpretação que o Papa faz, é conveniente transcrevê-la integralmente, porque não é possível dizer mais e melhor do que ela mesma em seu conteúdo, estilo, cenário, circunstâncias e personagens.

“E eis que um doutor da Lei se levantou e disse para experimentá-lo: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Ele disse: “Que está escrito na Lei? Como lês”? Ele, então, respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Jesus disse: “Respondeste corretamente; faz isso e viverás“. Ele, porém, querendo se justificar, disse a Jesus: “E quem é meu próximo?” Jesus retomou: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuide dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei’. Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”. Jesus então lhe disse: “Vai, e também tu, fazes o mesmo” (Lc 10, 26-37).

Parábola é uma figura de linguagem que convoca o ouvinte à ação. Parábolas não são contadas para ensinamento de ordem epistêmico ou intelectivo, mas de ordem prático, ético e político.

Quando Jesus contou a parábola do filho pródigo, por exemplo, o que lhe importava era fazer o ouvinte perceber as posturas práticas dos personagens narrados, colocando o ouvinte diante do espelho, enxergando-se como filho mais novo, filho mais velho ou o pai. Não há como ficar indiferente a uma narrativa dessa ordem.

Na parábola do bom samaritano acontece o mesmo e, para tirar todas as lições práticas que ela se propõe, é importante ter em conta o contexto, o cenário, as circunstâncias e os personagens, pois só assim se capta a mensagem intencionada por Jesus.

O contexto: uma regra básica para ler a Bíblia é ler cada texto em seu contexto para não virar pretexto de justificar ideologias e interesses escusos, descontextualizando-o. Assim, para melhor entender o poder simbólico e evocativo da parábola do bom samaritano, o Papa Francisco remonta às origens da defesa bíblica da fraternidade que, como um “fio de ouro” perpassa a Bíblia do Antigo ao Novo Testamento, iniciando pela narrativa de Caim e Abel.

Conhecemos a história de Caim e Abel. O cerne da narrativa é a pergunta que Deus lança à Caim, depois desse ter matado o irmão Abel. “Onde está Abel, teu irmão”? A resposta que Caim dá é a mesma desculpa de sempre, inclusive a nossa: “Acaso sou guarda do meu irmão?” A pergunta de Deus é incontornável e a interrogação que vem da resposta de Caim já está respondida na pergunta de Deus. Deus não disse, mas fica subentendido: “sim, você é o guarda do seu irmão” e o que você fez não se faz e não há desculpas ou escapatórias.

Nesse contexto a dimensão ética e religiosa que nos convoca a fraternidade recebe um lugar central que será elevado a grau máximo nas palavras de Jesus na parábola do bom samaritano.

Outro lugar de parada obrigatória no chamado à fraternidade, no contexto bíblico, encontra-se em Jó. O livro de Jó postula um mínimo fraterno e de direitos comuns, para além do sangue familiar, fundados no laço de “parentesco espiritual” que nos envolve a todos pelo fato de termos um “criador comum”.

Essa ideia de “criador comum” é um eco da longa tradição judaica que perpassa o Antigo Testamento e que aponta para em direção ao princípio da fraternidade, para além do sangue e para além da nacionalidade, em direção à universalidade. O antigo preceito “amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (Lv 19,18), vai se afirmando como regra de ouro de não fazer aos outros o que não queremos que nos faça (Tb 4,5) e que, no Novo Testamento, receberá uma fórmula nova, positiva e definitiva, a saber, “tudo, pois, quanto querei que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles. Essa é a Lei e os profetas (Mt 7,12). Esse apelo é universal e a conclusão não poderia ser outra senão o “sede misericordioso como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).

Em São Paulo o princípio de caridade, para com todos, ganha expressão de programa teológico e social (1Ts, 3,12). É nesse arco ampliado da defesa da fraternidade universal que deve ser inserida, para melhor ser compreendida, a parábola do bom samaritano.

O cenário, as circunstâncias e os personagens: Sobre o cenário o que o texto nos informa é que um homem descia de Jerusalém a Jericó e no caminho foi assaltado, espancado, deixando-o semimorto. “Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto”. Nada mais. E o texto, ainda, nada diz sobre quais foram as circunstâncias do evento. Não dá detalhes dos assaltantes, nem do homem assaltado e espancado e jogado no caminho. Não diz se foi de dia ou de noite, quantos assaltantes haviam, quem eram, que arma usaram, qual sua etnia, religião, nacionalidade etc.

Nada disso interessa para a moral da parábola. Não faz juízo sobre os salteadores e sua índole. Nem lamenta o fato e muito menos prega vingança que geraria mais violência. Simplesmente toma o fato como ponto de partida já consumado. Mas, se pouco ou nada diz sobre o cenário e as circunstâncias, diz muito sobre os personagens que entram na cena e completa o drama e, por força performativa, nos arrasta, também, para dentro da cena. Se sobre os salteadores e o homem caído e violentado a parábola dá como fato consumado, já não dá para dizer o mesmo dos outros personagens. Estes sim, dão o que pensar.

Os primeiros personagens são os que “passam adiante”. “Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu”. Logo, os que deveriam, por dever de ofício, parar e socorrer, “passam adiante”?

É um paradoxo e o paradoxo faz pensar e, no caso, faz parar para pensar quem são os sacerdotes e os levitas. Não seriam eles os que ensinam o dever de socorrer e amar e praticar a lei? Se pregam uma coisa e fazem outra, então são, além de insensíveis, hipócritas. Diz o Papa: “o fato de crer em Deus e adorá-lo não é garantia de viver como agrada a Deus” (FT 74).

Mas, seria injusto apontar para essas duas personagens como se fossem alguém que não nos diz respeito. Injusto e perigosamente confortável, mas ilusório, acharmo-nos justificados por não pertencermos a essas duas classes. Não se enxergar espelhados na atitude de indiferença pode ser confortável, mas não faz jus à realidade. Quem nunca passou adiante? Esse espelhamento deixa-nos desconfortável e incômodos. Por outro lado, é preciso dizer também que, às vezes, “aqueles que dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que aqueles que creem” (FT 74).

E que dizer do homem ferido e deixado à beira do caminho? O texto nada diz, além do seu lamentável estado, mas faz dizer. E o que faz dizer é que, atualmente, não faltam humanos abandonados, despidos de dignidade e violentados, deixados à margem da sociedade.

Diz o Papa: “Hoje, há cada vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos. Dia a dia, enfrentamos a opção de sermos bons samaritanos ou caminhantes indiferentes, que passam ao largo”. (FT 69).

 E o Papa arremata dizendo que diante das pessoas caídas e feridas, há uma redução das possíveis atitudes em apenas duas: “Já não há diferença entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote e nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo.

De fato, caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces: é a hora da verdade” (FT 70). Por fim, e o central, é a atitude do samaritano. O samaritano foi, concretamente, quem se fez próximo do judeu caído. A atitude do samaritano, não sendo judeu, considerado impuro por este, é de um poder simbólico absoluto. Fez o bem sem olhar a quem. Ultrapassou todas as barreiras culturais, religiosas e históricas. Levou o amor ao próximo como a si mesmo ao patamar superior.

Todas as fronteiras foram ultrapassadas, em nome do amor e do cuidado. Ele fez o que não lhe era um dever, fez por amor. Deu de seu tempo, dinheiro, preocupação. Realizou o mandato do amor de uma forma exemplar. No seu gesto está sintetizado o que de melhor se pode dizer sobre o amor ao próximo. Um amor incondicional e universal. Realizou de forma plena a dimensão fraterna de toda a espiritualidade que se queira cristã.

Como conclusão, pode-se dizer duas coisas.

Primeiro que se há alguém caído, ferido, excluído, nele mora Jesus, pelo menos na ótica cristã. Na ótica humanista, aí mora alguém com dignidade que precisa ser resgatada.

Quando se diz que fora de Jesus não há salvação está se dizendo, em outras palavras que fora dos pobres não há salvação. E isso por uma razão simples.

Salvando os pobres, e toma-se, aqui, os pobres como sinônimo de violentados, condenados da terra, os sem terra, sem teto, sem trabalho, os excluídos do mercado, das igrejas e das rodas sociais. Pobres e caídos no caminho são as mulheres que sofrem na cultura do machismo, os negros que enfrentam a cultura do racismo, os doente, velhos, enfim, os que estão fora do sistema de direitos no suposto Estado de Direitos.

Fora deles não há salvação. Isso significa algo muito simples. Se os pobres forem salvos, todos serão, pois os ricos e incluídos, já estão salvos…

Em segundo lugar é preciso que se diga que há uma única forma de mudarmos o estado de coisas: mudarmos de atitudes no cotidiano da opções pessoais, passando da indiferença ao cuidado, da violência à paz, da exclusão à inclusão, do individualismo à solidariedade, realizando assim o mandamento do amor. Além da mudança subjetiva, é imperioso voltarmos a ter esperança na política como a maior forma de caridade, pois dela depende o destino de muitos. “Vai, e também tu, fazes o mesmo” (Lc 10, 26-37).

Conheça outras duas reflexões sobre Fratelli Tutti, publicadas no blog do autor: Uma introdução e As sombras de um mundo fechado.

Autor: Gilmar Zampieri

Edição: Alex Rosset

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