Fratelli tutti: pensar e gerar um mundo aberto

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Sem educação para a fraternidade, a igualdade se fecha no “círculo” dos sócios. O bem comum e a sociedade que supere o individualismo que corrói as relações, só se alcança tendo como base a amizade social e a fraternidade em que o outro é visto com uma dignidade, a tal ponto, que a sua vida valha a minha.

No terceiro capítulo da Fratelli Tutti, o Papa Francisco dá um passo a mais em direção ao tema da fraternidade universal e amizade social. Para isso instiga o leitor a sair das bolhas fechadas e pensar e gestar um mundo aberto ao outro, para além dos afetos, do sangue, da nação.

Amar-se é fácil, amar a família é naturalmente fácil, amar os que nos amam é fácil, amar os amigos é fácil, amar e ser amigo dos que tem poder, prestígio, são bem cheirosos e com dinheiro, é fácil.

Difícil e desafiante é amar o diferente, o sujo e mal cheiroso. O Papa não quer pouco, ele nos puxa para a transcendência, desafiando para o sublime, o grandioso, para o excelso. Amar os “não naturalmente amáveis”, os pobres, os estrangeiros, os que não nos amam, eis o grandioso e o sublime.

Há algo em nós que resiste ao outro, mas há algo em nós que nos impulsiona ao amor ao outro. Sem o outro, quem somos? Os outros, no seu encontro e relação, definem a identidade pessoal de cada humano. E, sobretudo, na doação ao outro é que cada um se encontra em sua plena humanidade.

Fora do outro não há salvação. Não há um Robinson Crusoé ontológico. Os individualistas e egoístas estão equivocados. Na geografia constatamos que há ilhas, mas na alma e no corpo humano o que há é relações. Fora das relações não há salvação.

Essa parece ser a síntese desse capítulo da Fratelli Tutti, que o Papa desdobra em seis pontos:

1.Hospitalidade e amor para além da “bolha”. A questão aqui não é teórica ou especulativa. Não há ser humano que não possa testar e atestar em favor da experiência existencial de que “a partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência” (FT 88), arrancando a pessoa de si mesmo e projetando-a para o outro. O amor nos puxa para fora da “caverna do eu” e nos conduz para a luz, a beleza, a graça, o dom, a revelação que vem do outro.

O outro não é “um inferno”, como dizia Sartre. Até pode ser, mas não em essência e sempre. Naturalmente, somos o paraíso um do outro. Não é assim com a mãe e o pai? Não é assim com os irmãos de sangue? Não é assim com os amigos? Há coisa melhor do que estar junto aos amigos e familiares e aos que se ama? Contudo, esse círculo ainda é restrito.

A novidade vem do além, da hospitalidade inclusive com o estranho. “Não posso reduzir a minha vida à relação com um pequeno grupo, nem mesmo com minha própria família, porque é impossível compreender a mim mesmo sem uma teia mais ampla de relações” (FT 89). Alguém pode objetar e dizer que o que importa são relações intensas e com poucas pessoas, porém, diz o Papa, as relações intensas de vínculo de casal ou de amigos, podem esconder um egoísmo disfarçado de amor. O amor e as amizades autênticas habitam “corações que se deixam completar”. E o Papa diz mais: “Os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem com um “nós” contrapostos ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas, de egoísmo e mera autoproteção”(FT 89).

O Papa, nesse aspecto, é radical, isto é, vai à raiz. Ele diz que as virtudes éticas tais como a fortaleza, temperança, sobriedade, laboriosidade etc, só são tais se forem completadas com a caridade, sem a qual, recordando Santo Tomás de Aquino, o Papa diz que “a temperança de uma pessoa avarenta nem sequer é virtuosa” (FT 91). Em outras palavras, sem a caridade, as outras virtudes não cumprem autenticamente os propósitos de Deus.

Há pessoas que pensam que a sua grandeza está na força de domínio sobre o outro. Enganados estão. A grandeza de uma pessoa é medida pelo amor e pelo bem que faz ao outro “considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas e morais. O amor ao outro por ser quem é impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando essa forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível a amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos”(FT 94).

2.A progressiva abertura do amor. Muros, fronteiras e periferias demarcam o “eu e o outro”, o centro e a margem. O medo e a insensibilidade fecham o humano em si mesmo e, no máximo, com os seus. O amor, contudo, rompe diques, muros, ultrapassa fronteiras e periferias ampliando tanto o círculo de fraternidade quanto ampliando o círculo da formação da subjetividade que constitui a identidade pessoal.

Diz o Papa: “Por sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, uma maior capacidade de acolher os outros, em uma aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença. Disse-nos Jesus: ‘Todos vós sois irmãos’”(Mt 23,8) (FT 95). A progressiva abertura do amor ultrapassa os limites geográficos e também existenciais.

O Papa fala da necessidade de acolhida ao estrangeiro, de outra nacionalidade, de outras culturas, contudo, não se esquece dos “outros” que são periferias existenciais, mesmo fazendo parte da mesma cidade e até mesmo sendo vizinho. Há “exilado ocultos” na própria terra. “Cada irmão que sofre abandonado ou ignorado pela minha sociedade, é um forasteiro existencial, embora tenha nascido no mesmo país”(FT 97). O Papa fala dos idosos e dos deficientes como os mais ocultos e esquecidos pela cultura do descartável e que não promove “a pertença e a participação”, tornando muitos cidadãos sem cidadania plena.

O amor progressivo respeita a diversidade, mas aponta para a universalidade concreta em que a base será o que o Papa chama de “amizade social”, começando pelos últimos. Não se trata, portanto, de um universalismo abstrato ou autoritário. Ambos seriam noções inadequadas de um amor universal.

3.Superar um mundo de sócios. Neste item o Papa retoma, num primeiro momento, a parábola do bom samaritano para dizer que os personagens que passaram ao lado do homem ferido no caminho “não se concentraram no chamado interior de fazer-se próximas”, mas estavam preocupadas e concentradas no seu prestígio e função que exerciam na sociedade. “Sentiam-se importantes para a sociedade de então, e o que mais as preocupava era o papel que deviam desempenhar” (FT 101). Para o papel que exerciam na sociedade, o homem ferido no caminho era um “incômodo”, uma “interrupção” do seu papel, justamente para com alguém que não exercia papel algum dentro da sociedade.

O caído era um “zé ninguém”. É de se notar que justamente um samaritano, um estrangeiro, fora de qualquer categoria social de destaque, um estranho, livre das etiquetas sociais e livre das possíveis “imagem” a preservar, justamente ele se faz próximo do “zé ninguém”. Foi uma relação de “ninguém para ninguém”. Que crítica profunda aos “bem incluídos das rodas sociais e das igrejas”, Jesus não estava fazendo ao contar essa parábola?

Parece que Jesus estava querendo dizer que para a vida em sociedade mais vale ser próximo do que ser sócio. Sócio compartilha papéis e funções e se interessa com os “iguais”, mas não “perde tempo” para com os “outros’, sobretudo os que nada tem a oferecer em troca. Assim não se constrói sociedade.

Só se constrói sociedade na base da fraternidade como horizonte e medida da liberdade e da igualdade. A liberdade e a equidade são duas irmãs da fraternidade, contudo, da liberdade e da igualdade não surge, necessariamente, a fraternidade. Sem fraternidade a liberdade se reduz à autonomia para “pertencer a alguém” ou na capacidade de escolha de objetos de consumo, o que convenhamos, é pouco.

Sem educação para a fraternidade, a igualdade se fecha no “círculo” dos sócios. O bem comum e a sociedade que supere o individualismo que corrói as relações, só se alcança tendo como base a amizade social e a fraternidade em que o outro é visto com uma dignidade, a tal ponto, que a sua vida valha a minha.

4.Amor universal que promove as pessoas. Só há um caminho seguro para caminhar rumo à amizade social e a fraternidade universal. Esse caminho é pavimentado pelo princípio da dignidade humana, única, universal e intransferível.

Nesse aspecto, Papa Francisco faz eco à ideia Kantiana que diz que “as coisas têm preço, os humanos têm dignidade”.

De fato, assim é, pelo menos para Kant. (Kant não postulava direitos dos animais e não lhe passava pela cabeça que, talvez, esses também têm dignidade). Se os humanos tivessem preço, poderiam ser trocados no mercado de valores relativos. As coisas têm preço, os humanos, todos eles, têm dignidade. Isso significa que a escravidão não tem legitimidade moral. Isso significa também que não se pode avaliar uma pessoa pelo que tem, produz ou pela sua utilidade. “Quando não se salvaguarda esse princípio elementar, não há futuro para a fraternidade universal nem para a sobrevivência da humanidade” (FT 107).

O problema está no fato de que há sociedades que acolhem apenas parcialmente esse princípio. Os defensores da meritocracia e do mercado auto regulador, por exemplo, são desse grupo. Estes defendem que as possibilidades existem para todos e que “tudo depende de cada um”.

Segundo essa perspectiva parcial, não faz sentido apostar nos fracos, lentos e menos dotados. Investir em pessoas frágeis e vulneráveis seria, segundo essa concepção, uma injustiça para os que empreendem por conta própria e vencem na vida.

Papa Francisco desmonta a tese da meritocracia e do mercado total de uma forma serena, sutil e definitiva. Diz o Papa: “Alguns nascem em famílias com boas condições econômicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão de um estado ativo e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra com uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades.

Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficácia, não haverá lugar para tais pessoas e a fraternidade não passará de uma mera palavra romântica” (FT 109). Como dizer mais e melhor? Enquanto o sistema econômico produzir exclusões e vítimas, as palavras como “democracia”, “liberdade” e “fraternidade” esvaziam-se de sentido e longe estará a festa da fraternidade universal.

5.Promover o bem moral. A superação de uma sociedade que proclama o “eu” acima dos “nós” e que tende a se expressar na cultura do egoísmo que funda o capitalismo excludente, tem na defesa da dignidade humana um pilar seguro.

O outro pilar é a educação para os valores morais e bens espirituais mais altos. A família e a escola são os lugares preferenciais para a educação para o bem.

A crise civilizacional se dá, em boa medida, por alimentarmos desejos infinitos de bens materiais e deixarmos em segundo plano os bens de ordem moral e espiritual. Papa Francisco tem clara noção do que está posto quando fala de valores morais e dá um destaque todo especial ao valor da solidariedade que, ao lado da honestidade, bondade e a fé, são um fundamento seguro para a amizade social e a construção da fraternidade universal. “A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros…

Os menos favorecidos, em geral, praticam aquela solidariedade tão especial que existe os que sofrem…Solidariedade é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos.

É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais” (FT 115-116).

Só com espírito de solidariedade realizaremos o bem comum que implica em renúncia do interesse próprio em nome de um bem maior e mais excelso. É o caso de alguém que tendo água em abundância, é capaz de poupar em favor da preservação da casa comum e dos interesses da humanidade. Só uma consciência moral elevada que possibilita transcender a si mesmo, como é o caso da solidariedade, será capaz de um ato tão nobre.

6.Função social da propriedade. “O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nessa terra com a mesma dignidade” (FT 118) diz o Papa Francisco ao se referir ao direito que os humanos têm a uma vida integralmente desenvolvida. Recorda, para tanto, a longa tradição da igreja que defende, intransigentemente, o direito dos pobres e a necessária função social da propriedade.

Papa Francisco recorda São João Crisóstomo, que diz que se alguém não tem o necessário para viver com dignidade é porque outros se apropriaram indevidamente. Nas palavras de Crisóstomo citados pelo Papa Francisco: “‘não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubar e tirar-lhe a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos’”(FT 119).

São Gregório Magno não é menos incisivo. Diz Gregório: “quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitando-nos a restituir o que lhe pertence”. (FT 119).

Mais direto e definitivo, impossível. Contudo, o Papa Francisco vai além e repete o que já tinha dito na Laudato si’, a saber: “a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada” (FT 120).

Papa Francisco encerra a reflexão sobre a função social propriedade, elogiando os empresários que fomentam o desenvolvimento, contudo, chamando-os à responsabilidade para que o desenvolvimento esteja a favor da vida e não para a acumulação do capital. E conclui com a sua tradicional defesa dos direitos humanos para além das fronteiras dizendo: “Se toda pessoa possui uma dignidade inalienável, se todo ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se nasceu aqui ou vive fora dos limites do seu próprio país. Também minha nação é responsável por se desenvolvimento” (FT 125).

Em conclusão, pensar e gerar um mundo aberto parece ser algo utópico e distante no horizonte da vivência societária, mas não é impossível, desde que as bases da amizade e da fraternidade sejam assentadas na defesa da dignidade e na promoção dos valores morais e espirituais mais nobres. E aqui valem as palavras do Papa Francisco: “Trata-se, sem dúvida, de outra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nessa lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio” (FT 127).

Somos todos irmãos ou a fraternidade e a amizade social não passam de um devaneio? Dizer que não somos todos irmãos e que somos, antes, inimigos uns dos outros e que deveríamos acentuar e acirrar a inimizade, implodiria a vida societária e só um irresponsável poderia assim pensar. E o Papa não é um irresponsável. Mas também não é um idealista a tal ponto de pensar que já vivemos integralmente a fraternidade. Não. A fraternidade é um ideário e para concretizá-la é indispensável enfrentar alguns desafios. Leia mais!

Autor: Gilmar Zampieri

Edição: Alex Rosset

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