Fui me transformando em gaúcho, precisava

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Enquanto as águas subiam, me disse meu amigo: “Fui me transformando em gaúcho. Precisava”. E completou: “Façamos, pois, cara feia para os males, companheiro”.

Acabo de falar com um colega diretamente atingido pela terrível enchente que nos assola. Me disse ele que nunca participou de Centros de Tradições Gaúchas, nem botas, alpargatas e bombacha tem. No entanto, para sua surpresa, quanto mais a água subia, mais recordava da vez que leu Martin Fierro de José Hernandez. Foi atrás do livro e recitou-me a passagem: “Por dura que seja a sorte, nem há que pensar na morte, senão em vencer a vida…”

Acabou se preocupando em salvar das águas não só o poema de José Hernandez mas também um texto que tinha de Richard Llewellyn, escritor inglês. Texto antigo de quando o inglês esteve por aqui e se impressionou com o povo gaúcho.

Sabemos, vou ser breve, é tema bem conhecido, que o gaúcho nasce onde havia europeu, índio e gado sem dono, solto em grande quantidade. O homem europeu começa a se acasalar com a índia e nasce dessa mistura um povo com mentalidade europeia e habilidade indígena. O europeu não sabe fazer nem se dispõe ao rude trabalho de reunir o gado silvestre. O índio, que tem habilidade para isso, não se interessa, não vê necessidade disso. O filho do europeu e do índio, este, sim, reúne as condições. E nessa lide vão se construindo gaúchos e vai se formando, aos poucos, um povo.

Serviço dificílimo: reunir gado chucro, domesticá-lo, transportar tropas por longas distâncias, atravessar rios, correntezas, alagamentos…

Esse gaúcho, é claro, não existe mais: as cercas, as cidades, as mudanças nos meios de produção fizeram com que ele descesse do cavalo. A ficção de Cyro Martins bem descreve esse “gaúcho a pé”. Mas seu lado “super-homem” permanece vivo.

Quem mora em outras paragens tem certamente outros modelos. O gaúcho é o nosso. Modelo no sentido de que se ele fez é sinal que é possível de ser feito. Se ele superou o que superou, também podemos.

E lembrando dele, podemos fazer crescer qualidades tão necessárias: honestidade, franqueza, coragem, destemor frente à morte, tomada imediata de decisão, aceitar qualquer empreitada e fazer o que tem de ser feito!

Enquanto as águas subiam, me disse meu amigo: “Fui me transformando em gaúcho. Precisava”. E completou: “Façamos, pois, cara feia para os males, companheiro”.

Autor: Jorge A. Salton. Também escreveu “Humana beleza de ser empático”: https://www.neipies.com/humana-beleza-de-ser-empatico/

Edição: A. R.

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