A escola que nada me ensinou sobre o
golpe de 64 precisa enfrentar os que a
amordaçaram por tanto tempo e pretendem
continuar controlando seus atos.
A universidade brasileira ganhou a chance de se redimir dos seus silêncios em meio às articulações que derrubaram Dilma Rousseff. Professores, estudantes, servidores em geral e comunidades ao redor têm a missão de levar o debate do golpe dos pátios para as salas de aula, como fez a Universidade de Brasília e como promete fazer agora a Universidade de Campinas.
A Unicamp terá uma disciplina com o mesmo título da criada pela UnB: “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. Outras universidades poderiam imitá-las. Criem disciplinas e cursos sobre o golpe. Estudem o golpe, debatam, condenem e alertem sobre novos golpes.
Não se acovardem diante da ameaça de que a universidade pública não pode se meter em política. Não levem a sério os processos do Ministério da Educação de Mendonça Filho contra a UnB.
Se a universidade não tivesse autonomia para estudar golpes, ninguém saberia hoje que a exaltada proclamação da República foi um deles. A escola que nada me ensinou sobre o golpe de 64 precisa enfrentar os que a amordaçaram por tanto tempo e pretendem continuar controlando seus atos.
Hoje, até a Globo diz no Jornal Nacional que em 1964 houve um golpe. A universidade não precisa esperar que a Globo diga, daqui a 40 anos, que Dilma também foi golpeada. A universidade quieta, omissa e encaramujada diante do golpe de agosto de 2016 (por favor, não me citem exceções) tem agora a oportunidade que os restos de democracia oferecem.
Os professores não podem fugir da obrigação de ensinar o que é um golpe, como se articula e como é levado adiante, como este executado pelo Brasil arcaico, sem a necessidade de ajuda externa. A universidade deve esclarecer: o golpe foi uma artimanha dos coronéis, não só os do Nordeste, mas do grande empresariado paulista. Junto com os sargentos e os coronéis da imprensa, do Ministério Público, do Judiciário.
Os jovens distanciados da política talvez digam que não querem saber dessa conversa, que pretendem se mumificar como jovens até os 40 anos, quem sabe até os 60. Mas é tarefa do professor tentar acordá-los para a idade adulta, já que muitos desistiram de cumprir a vocação dos estudantes de protestar, instigar e transgredir.
O Ministério da Educação avisou, para assustar a UnB, que o projeto de estudar o golpe não tem sustentação em nenhuma ciência. Mas de que ciência falamos num desgoverno que despreza a cultura e a ciência? Que ciência deu aos cúmplices de 64 o direito de dizer, nas aulas de Moral e Cívica, que a ditadura era lastreada pelo desejo moralizante das famílias?
Vamos torcer para que que se multipliquem pelo Brasil os cursos sobre o golpe. Que a universidade pública, ameaçada de extinção, ressuscite em grande estilo. Queremos cursos sobre o golpe em toda parte, em igrejas, sindicatos, ONGs, inclusive no ensino médio.
Falem do golpe como quem fala de racismo, de xenofonia, de homofobia. Enfrentem os discordantes, não temam os reacionários do fundo da sala.
Tanto na UnB como na Unicamp, o curso é optativo, não é uma disciplina dentro de uma grade obrigatória. Deveria ser. A universidade pública precisa estudar o golpe como estuda a Guerra do Paraguai, sem a desculpa de que é algo muito recente.
A universidade golpeada um dia perderá o medo, como aconteceu depois de 64, e será restabelecida como reduto da resistência.
A Unicamp incluiu no seu curso o protagonismo do Judiciário, com aulas sobre “O jogo político do STF e o golpe”. A educação talvez acabe assumindo sozinha uma tarefa que em outros tempos, inclusive na ditadura, era dela e da imprensa.
Mas a imprensa acovardou-se e se dedica há anos a reproduzir conversas, vazamentos e delações filtradas pela Lava-Jato. A imprensa é quase uma extensão subalterna do Judiciário. Querer contar com o jornalismo é quase como pretender que Curitiba pegue tucanos.
Sorte dos estudantes que poderão estudar o golpe e, como prometem as duas universidades, a depreciação moral das instituições a partir do que aconteceu em agosto.
Que estudem também o fechamento de escolas, como parte da estratégia de esvaziamento do ensino público, e o racionamento da merenda escolar (quando não é furtada pelo superfaturamento dos tucanos, como aconteceu em São Paulo), como tática para que as crianças não fiquem obesas, como disse o secretário de Educação de Porto Alegre.
Os estudantes da UnB e da Unicamp saberão mais não só sobre manobras golpistas, mas sobre democracia. Colegas de outras universidades, inclusive privadas, poderiam exigir que seus cursos façam o mesmo.
Não tenham medo dos golpistas, muito menos dos que não aguentarão o tranco e sairão porta afora gritando o nome do Bolsonaro.
Moisés Mendes escreve para o Jornal Extra-classe online. Este artigo foi originalmente publicado no mesmo.
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