Há cinquenta países que leem mais do que nós. O que nos atrasa?

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Sim, o prazer, o deleite em ler, a calma preciosa da leitura degustada, sem pressa, sem cobrança, que nos emociona e nos transforma.

“E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se.  A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso…

E o curioso é que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas.  Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes…” (do livro O cortiço, Aluísio Azevedo)

Seria impensável, como exigência aos nossos alunos e alunas, que descrevessem sobre texto acima, sem consultar, claro, quaisquer fontes.

Não tem problema.

Compreende-se o trauma em se exigir a um público letrado ou desconhecido, em relação a este escrito, realizado em 1890; um clássico, um livro indispensável a qualquer brasileiro, aos que estão à boca do vestibular, aos que já passaram e aos que jamais passarão. Não importa.

E por qual razão destacamos o artigo?

Porque mesmo que a história estivesse à disposição de todas as pessoas, em praças ou em quaisquer locais públicos, escolas ou empresas, hoje, o seu interesse seria mediano; quem sabe, nenhum!

E a razão é simples: há prazer nessa leitura. As suas páginas nos remetem há uma época que ficou no passado, mas nem tanto. Seus personagens, todos do século XIX, parecem retirados de nossos arrabaldes de hoje, em periferias esquecidas, onde as pessoas muitas vezes vivem amontoadas, em espaços ultrajantes.

Aluísio Azevedo escreveu seu livro e o destinou para os próximos séculos, pelo menos dois. Suas palavras, muitas delas incompreensíveis para o escasso vocabular que nos contorna, soa um país que não mais existe. Portanto, não há motivos para ler o que não nos diz respeito.

Eis o engano!

Lemos o Cortiço por puro prazer. Como tantos outros. Não se precisa de mais nada.

Apenas os derivados do livro: encantamento, satisfação.  Deleite, como uma professora, recentemente, em Mogi das Cruzes, referindo-se à leitura de um livro em sala de aula, destacou:

Fizemos a leitura deleite, eu e um aluno.  Depois a reflexão sobre a história.

 O que é uma declaração feita um oásis, no deserto da leitura.

Quem lê O Cortiço não quer parar; tem os seus sentidos aguçados, por uma época, em que se pensa, já passou, e, em seguida, vê-la na esquina.  Está logo ali. Por que diz respeito a nós, como país, que mesmo após 100 anos não encontra soluções dignas que prevaleçam.

Suas palavras obtusas e deliciosas, presas ao seu século, fazem parar seus leitores em todas as páginas. Seus personagens formam um convite para que entremos na história, no seu dia a dia, o que para um leitor mais eufórico, pode escolher o que mais lhe parece familiar, e com ele conviver até o seu final.

Não seria exatamente o que nos falta nestes dias sombrios, de escassa e frívola leitura?  Para deixarmos o índice ao qual fazemos parte, o dos países mais iletrados do mundo?

Sim, o prazer, o deleite em ler, a calma preciosa da leitura degustada, sem pressa, sem cobrança, que nos emociona e nos transforma.

Leia também a crônica Ler: um prazer pouco valorizado: https://www.neipies.com/ler-prazer-pouco-explorado/

Estamos todos correndo, muito ocupados, tentando ser felizes, como nos diz Matthew Kelly.

Sejamos francos, é uma guerra quase perdida, a da leitura, da curiosidade por livros e mais livros. Novos e antigos, os que falam de outras épocas ou de época nenhuma, e que induzem a um pensamento abstrato e desprovido de qualquer conforto.

Vivemos o tempo dos livros esquecidos.

Haverá solução ao vermos a mudança, nesta geração de péssimo vocabulário, da comunicação truncada e das redações zeradas? Há tempo de parar essa corrida insana de nossas crianças, em sua busca por aplicativos que vendem imagens, em prazeres furtivos, trocando-as para outras imagens, imaginárias, as do prazer do silêncio em uma leitura contemplativa?

Pensem:  quem irá se interessar por leitura, observando seus pais em casa, que não leem, seus irmãos, que não leem, professores sobrecarregados, muitas vezes, que não leem…que motivação as fará mudar?  Vamos esperar que tomem a sua própria iniciativa? E se lerem, que níveis de prazer e fruição buscarão?

Em um minuto apenas, uma criança pode assistir 12 vídeos em qualquer um dos aplicativos que recheiam seus celulares. E se forem desinteressantes ao seu campo imediato de prazer, até mais. Façam as contas.

Aos meninos e meninas que tem um alcance tão grande de acessos pelas redes, mal sabem eles, que sem leitura e interpretação, sem debate e orientação, serão as próprias redes que os tornarão idiotizados.

Penso que o incentivo à prática e à vivência da leitura terá de ser resgatado pelo prazer de se ler, antes de qualquer oferta mercadológica que feiras de livros ofereçam; ou de qualquer estante exposta em um supermercado, passando a falsa impressão de que há incentivo e interesse à leitura nestes dias.

Ler, aquietar-se, tem de vir de dentro. Mas passa pela opção familiar em desacelerar, apagar as luzes que as tornam vigilantes o tempo todo, libertar-se do poder inebriante e inútil da televisão.  Aliás, ler em família, debater temas e livros se tornou tão raro que, quem o fizer e falar, levará escândalo a vizinhos e amigos.

Em tempos de resgate e compreensão da empatia, quem não perceber que ela pode nascer justamente da leitura, perderá o seu tempo na sua insistência.

Foram nas primeiras leituras que todos nós, vivendo as suas histórias, fomos colocados no lugar de vilões e heróis, assumindo papéis que a realidade nos impedia. E como leitores, fomos transformados em atores, assumindo roupagens distintas, em personagens improváveis.

E continua sendo dessa forma! Na leitura, mergulhamos em uma realidade que não vemos, sentimos.  E, sentindo, terminamos por nos tornar naquilo em que lemos. Daí que a leitura é a primeira geradora da empatia, e somente por ela, torna nossos instintos controláveis e mais previsíveis, podendo administrar nossos próprios ódios, e os alheios, a partir de nossos sofás. Porque um livro à mão é um julgamento a menos.

Quem quer mergulhar na leitura do Cortiço, mesmo que nesse tempo histórico nem queira viver? É uma viagem, vendo as palavras terem vida, sentido e prazer.

Pois será como no título deste livro, que vamos nos transformar como nação, pensando, que somente em oferecer mais livros será o suficiente para despertar a sua sedução.

Na magia da leitura somos enfeitiçados.  É o que nos liberta!

Autor: Nelceu Zanatta. Também publicou no site a crônica “O fim da empatia é o fim da civilização”: https://www.neipies.com/o-fim-da-empatia-e-o-fim-da-civilizacao/

Edição: A. R.

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