Esse é o primeiro de três ensaios sobre o Ensino Religioso, esses justificam-se pela necessidade constante da reflexão e da partilha. Ao fazer contato com os textos sinta-se à vontade para interagir conosco e nos ajudar à crescer na compressão, aperfeiçoamento e valorização da cultura religiosa, objeto da área de Ensino Religioso.
É comum percebermos, em alguns ambientes de ensino, certo descaso com o Ensino Religioso e as Ciências Humanas, o que está de acordo com uma educação centrada no desenvolvimento de habilidades para o mercado de trabalho. “Onde vou usar isso? ”, “porque precisa ter Ensino Religioso na escola? ”, “ Agora temos aula de “religião”? ” são questões que denotam uma visão utilitarista da educação, ao mesmo tempo em que denunciam a presença de compreensões equivocadas a respeito deste conhecimento, cuja, presença no currículo justifica-se exatamente pelo fato de ser cultura, e da escola constituir-se em espaço que possibilita acesso aos conhecimentos/culturais já produzidos pela humanidade ao mesmo tempo que instiga a produção de novos saberes.
Nos propusemos a olhar o Ensino Religioso em três ensaios que seguem perspectivas que estão inter-relacionadas. Nesse primeiro ensaio olhamos para a perspectiva histórica; em um segundo ensaio apresentaremos alguns fundamentos para o Ensino Religioso escolar; por fim, mas sem a pretensão de concluir, no terceiro ensaio ponderamos sobre a metodologia do Ensino Religioso propondo um modelo dialógico para as aulas, momentos privilegiados para construção de uma cultura da paz.
PERSPECTIVA HISTÓRICA
“As instituições religiosas (Igrejas) temem que o ensino religioso, trabalhado como conhecimento, seja desmobilizador das motivações religiosas e pastorais, bem como desestruturante das próprias instituições. Temem que a doutrina específica de cada Igreja seja generalizada, de forma a perder sua identidade” (BENINCÁ 2010. p.49).
Um dos desafios do Ensino Religioso é o caráter doutrinário que nos remete ao surgimento das escolas medievais, ocorrido na escolástica entre o século XI e XV. Nessa época, escolas construídas em torno das igrejas privilegiavam uma educação católica, eminentemente confessional; o mesmo se diga sobre o surgimento das universidades europeias centradas no estudo da bíblia e na defesa da fé.
O catolicismo, religião considerada na época oficial e hoje a que tem maior número de adeptos, contribuiu para essa concepção de um ensino religioso com caráter catequético. Pensando na realidade brasileira isso se torna ainda mais crível se considerarmos o “descobrimento[1]” da américa latina, a catequização dos que aqui residiam e toda educação Jesuíta que se seguiu.
Depois da independência do Brasil o modelo educacional da companhia de Jesus seguiu vigorando, bem como o regime do padroado que mantinha fortes os vínculos entre o império e a igreja, cabendo ao império a nomeação de pessoas do clero como funcionários do Estado. Essa heteronomia nas relações políticas influenciava diretamente na organização curricular, como salientam Sepulveda:
“A presença católica na escola brasileira ultrapassava a questão da disciplina escolar, era um problema curricular, pois, praticamente todos os conteúdos de todas as disciplinas, assim como a formação da maioria dos professores, de uma forma ou de outra, relacionava-se com a religião católica, seja pelos padrões morais, seja pela presença física de sacerdotes na estrutura escolar” (Educação, v. 42, n. 1, jan./abr. 2017).
Durante a primeira república, ainda que formalmente o ensino da religião saiu do currículo escolar, não sem resistência, visto que a Igreja seguia fazendo esforços para interferir na re-inclusão do Ensino Religioso como “matéria” curricular, o que ocorreu através do decreto nº 19.941 no ano de 1931. No decreto lemos orientações sobre o material a ser utilizado, os requisitos que precisavam ser preenchidos pela escola. Mencionamos alguns artigos do decreto a seguir devido a pertinência do mesmo no contexto deste estudo.
Art. 1º Fica facultado, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o ensino da religião. Art. 2º Da assistência às aulas de religião haverá dispensa para os alunos cujos pais ou tutores, no ato da matrícula, a requererem. Art. 3º Para que o ensino religioso seja ministrado nos estabelecimentos oficiais de ensino é necessário que um grupo de, pelo menos, vinte alunos se proponha a recebê-lo. Art. 4º A organização dos programas do ensino religioso e a escolha dos livros de texto ficam a cargo dos ministros do respectivo culto, cujas comunicações, a este respeito, serão transmitidas às autoridades escolares interessadas. Art. 5º A inspeção e vigilância do ensino religioso pertencem ao Estado, no que respeita a disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere à doutrina e à moral dos professores. Art. 6º Os professores de instrução religiosa serão designados pelas autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado. Art. 8º A instrução religiosa deverá ser ministrada de maneira a não prejudicar o horário das aulas das demais matérias do curso (DECRETO nº 19.941, de 30 de Abril de 1931).
Os artigos do decreto acima demostram que estamos em um campo polêmico, embora tratado como matéria facultativa, o ensino, no caso de religião ocorria sob a vigilância de lideranças religiosas e do Estado.
Chamamos atenção para o artigo 4, cujo teor advoga na defesa de um ensino confessional entendido como ensino de religiões, inclusive no que tange a escolha do material didático. As mudanças que se seguiram na constituição de 1946 mantiveram o viés da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), o caráter facultativo e o ensino atrelado a confissão do estudante como lemos no artigo V: “o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável” (BRASIL1934).
Durante o regime cívico militar, que predominou de 1964 à 1985, o Ensino Religioso junto com a Educação Moral e Cívica disputavam o grau de importância. Entende-se que especialmente nesse período a escola precisava dar conta do ensino vinculado ao modelo de governo, sendo assim, não cabia ao ensino religioso tratar sobre tolerância, direitos humanos, valores democráticos, visto que tais objetos do conhecimento não eram uteis para manutenção do status quo, então ensinavam-se doutrinas religiosas. Como em outros momentos mencionados anteriormente, neste também encontramos as raízes para uma concepção de ensino religioso desvinculada da ampla cultura religiosa já produzida.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assumiu decretos e leis citadas anteriormente, modificando o artigo que tratava sobre a remuneração dos professores que voltou a ser responsabilidade do estado, uma vez que, na legislação de 1946 os docentes dessa área não eram pagos pelo Estado, o que privilegiou o acesso a um ensino religioso por parte dos estudantes das redes particulares de ensino, muitas delas de caráter confessional.
Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/96) o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso alterou o dispositivo do Ensino Religioso que passou a ser considerado “parte integrante da formação básica do cidadão”.
Como lemos na LDB (Lei 9.394/96) “§ O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (BRASIL 1996). Aqui podemos fazer uma interpretação crítica da lei, o Ensino Religioso é obrigatório para a escola que precisa oferecer, mas, não é para o estudante que pode escolher se vai frequentar as aulas e entrar em contato com os objetos do conhecimento deste que atualmente é uma área do conhecimento humano.
Também assinalamos que na LDB a um avanço em relação a perspectiva do Ensino Religioso no tocante ao conteúdo e a autonomia para o docente superar o ensino de religião, proporcionar um aprendizado democrático e integral: “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL 1996). Ainda nesse sentido a LDB orienta que:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. (LDB, 9.394/96).
Essas orientações são frisadas na Base Nacional Comum Curricular, documento norteador das práticas pedagógicas das Escolas Brasileiras, no qual destaca-se que o Ensino Religioso, tornado área do conhecimento humano, se realiza desde a opção por conteúdos nascidos das ciências humanas e sociais, e das ciências das religiões, importa agora analisar o fenômeno religioso e sua significação para a formação humana.
Como lemos na BNCC “O conhecimento religioso, objeto da área de Ensino Religioso, é produzido no âmbito das diferentes áreas do conhecimento científico das Ciências Humanas e Sociais, notadamente da (s) Ciência (s) da (s) Religião (ões)” (BRASIL, 2018). Seguindo essa ótica, as aulas de Ensino Religioso devem se constituir em espaços de exercício da alteridade, de combate a intolerância e todas as formas de discriminação:
Por isso, a interculturalidade e a ética da alteridade constituem fundamentos teóricos e pedagógicos do Ensino Religioso, porque favorecem o reconhecimento e respeito às histórias, memórias, crenças, convicções e valores de diferentes culturas, tradições religiosas e filosofias de vida. (BRASIL. 2018).
Tendo feito esse olhar, ainda que breve, para a história do Ensino religioso, frisamos que a concepção norteadora desse fazer pedagógico passou por diferentes perspectivas, priorizando-se o ensino confessional e doutrinário. Com a constituição de 1988, A LDB e a BNCC saímos do aspecto catequético/ doutrinário para um ensino pautado nas ciências das religiões, na dimensão transcendente e sagrada da vida presente nas religiões e filosofia de vida.
O que faremos no próximo ensaio é uma fundamentação da presença do Ensino Religioso nas escolas, visto que é uma das dimensões que compõe o ser humano e um conhecimento que precisa ser ofertado para que a formação dos estudantes não fique incompleta.
Autor: Marciano Pereira
Questões para seguir refletindo.
1. A qual modelo de Ensino Religioso você teve acesso? O que lembra das aulas de Ensino Religioso?
2. Você considera o Ensino Religioso um componente que precisa fazer parte dos currículos escolares? Justifique sua resposta.
3. Os educandos participam com afinco das aulas de Ensino Religioso, já conseguem entender a importância desse conhecimento para a formação humana?
REFERÊNCIAS:
BENINCÁ, Elli. Religião, Saúde e o Popular. Passo Fundo. Editora Berthier 2010.
SEPULVEDA, Denise, A disciplina de Ensino Religioso: história, legislação e prática.
Educação, v. 42, n. 1, jan./abr. 2017, disponível em https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/issue/view/1172 Acesso 05/09/2021.
______Câmara dos Deputados. Portal Legislativo. Decreto nº 19.941 (1931). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19941-30-abril-1931-518529-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 19 agosto. 2021.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
LDB – Leis de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394. 1996.Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf> Acesso em setembro de 2021
Edição: Alex Rosset
Gratidão professor Silvio! Seu parecer é uma honra que me alegra e motiva a seguir nessa caminhada. No próximo ensaio abordaremos com mais ênfase a importância do Ensino Religioso como conhecimento muito necessário para nossa formação.
Gratidão!
Excelente esta retrospectiva histórica prof. Marciano. Fundamental este resgate, bem como a ênfase na importância do ERE como área de conhecimento. Certamente, há muitos desafios neste processo, mas estamos no caminho.