O que alimenta os direitos humanos é um misto de aspiração, de garantia e de luta… Mas, o que sustenta a tudo são as aspirações. Elas é que alimentam o querer sempre mais, o querer ser mais, vocação humana, como dizia Paulo Freire.
Meus agradecimentos à coordenação pelo convite para pronunciar esta homenagem. Obrigado a cada uma e cada um de vocês que está aqui para esta celebração. Obrigado a quem nos legou a possibilidade deste encontro. É maravilhoso podermos celebrar juntos os 40 anos da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo, a nossa CDHPF.
Era 1984. Ainda em vigor a ditadura militar… no último ano do presidente-general; o ano que traiu a milhões de brasileiras e brasileiros com a rejeição da emenda das diretas pelo Congresso e a frustração de um dos movimentos cívicos mais importantes da história recente – o grande movimento pelas diretas já, que levou milhões às ruas em todo o país, e milhares também em Passo Fundo.
1984 seria o ano de realização da distopia de George Orwell que deu nome a um de seus livros mais famosos (1984), publicado em 1955, que, em nosso país veio, a se realizar, não sem adaptações e parcialmente, 35 anos depois… com o novo fascismo e o bolsonarismo… e que felizmente já começamos a enfrentar, mesmo que nos custe muito derrotar.
1984 foi o ano que consagrou Thriller, de Michel Jackson, com sete Grammy; que viu o lançamento de Like a virgin, da Madonna; de I want to break free, do Queen; de Sonífera ilha, dos Titãs; de Lindo lago amor, do Gonzaguinha; de Raça humana, com Vamos fugir, do Gilberto Gil. Foi também o ano de Karatê Kid, de Caça-fantasmas; do Exterminador do futuro; de Cabra marcado para morrer…
1984 foi também o ano de fundação do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra, o MST, e um ano antes da histórica ocupação da Fazenda Annoni, aqui na região; da publicação de Mulher Negra, da grande liderança do Movimento Negro Unificado, Lélia González; da greve geral dos “boias-frias”, em Guariba, SP. Foi o ano que deu o Nobel da Paz a Desmond Tutu, pela luta contra o apartheid. Naquele ano foi publicada a lei do segundo Plano Diretor de Passo Fundo – o atual está sem revisão há quase vinte anos. Foi um ano de grandes obras, as perimetrais, que expulsaram centenas de famílias, que formaram o que hoje é o Jaboticabal.
1984, ano de muitos acontecimentos, é também o ano da criação, da fundação, da CDHPF… que ocorreu no dia seis de junho, às dezoito horas, em reunião realizada no Salão dos fundos da Catedral. Dois foram os objetivos registrados na ata de fundação: “promover e defender os direitos das pessoas, famílias e organizações; e assessorar a organização popular na defesa de direitos”. Eles se tornaram obra e são o que caracteriza a CDHPF nos seus anos de atuação.
Era um grupo de vinte pessoas, as que assinaram a ata de fundação. Na ocasião foi eleita a primeira coordenação. Registro seus componentes: Maria Sirlei Vieira, Roque Zimmermann, Elmar Luiz Sauer, Ademar Dal’Cortivo, Luiz Roberto Albuquerque e Helena Andreis Lorenzatto. Nossa homenagem e estas corajosas e estes corajosos. Obrigado por legarem a CDHPF…
Paro com estes registros… os fiz para reforçar a necessidade da memória – é ela que alimenta a história… Haveria muitas outras possibilidades de referências a acontecimentos e pessoas. Rendo homenagem a três que foram pilares desta história e que já nos deixaram: Maria Sirlei Vieira, Roque Zimmermann e Maria de Fátima Zanchin. Presente, presente, presente, agora e sempre.
É porque homens e mulheres acreditaram que seria necessária a organização e a luta por direitos humanos, num lugar excessivamente conservador como Passo Fundo, que existe a CDHPF. Elas e eles nos deram a tarefa de seguir acreditando, de seguir realizando. Nos ensinaram que é preciso fazer, mas também e, especialmente, alimentar o “irrealizável”, o que chamamos de “utopia”. E os direitos humanos têm muito de utópico…
O que alimenta os direitos humanos é um misto de aspiração, de garantia e de luta… Mas, o que sustenta a tudo são as aspirações. Elas é que alimentam o querer sempre mais, o querer ser mais, vocação humana, como dizia Paulo Freire.
É porque muitas e muitos acreditaram que o que a vida pede da gente e coragem, para promover a alegria no meio da alegria, e ainda mais alegria no meio da tristeza – como nos ensinou João Guimarães Rosa – e olha que são tantas as tristezas e as violações a enfrentar – que seguimos, que precisamos seguir…
Que bom estarmos aqui. E estamos aqui para dizer que estaremos aqui pelos próximos 40 anos, pelos próximos 40 anos vezes sete… Certamente neles já não estaremos muitos de nós… por isso, o nosso maior compromisso hoje é de seguir seduzindo e convencendo a corações e mentes, especialmente da “guriazada”, convocando pés, mãos e ombros, a empenhar a vida pela vida, a vida pela luta!
Nunca foi e nem será fácil defender a vida – e, só com palavras, então, será ainda mais difícil, como dizia João Cabral de Melo Neto – num mundo com cada vez mais retrocessos, ataques, corrosões, inversões graves dos direitos humanos; num mundo que insiste em forçar trocar direitos por negócios (disponíveis só para quem pode pagar, diferente dos diretos que são de todos e todas e para todas e todos).
Afirmar direitos humanos é promover mundos nos quais caibam todos os mundos, como defendem os zapatistas, promover mundos nos quais caibam todas as pessoas, todas as vidas…
Muito Obrigado.
(Intervenção no ato que antecedeu ao jantar de celebração dos 40 anos da CDHPF, ocorrido em Passo Fundo, no Lalau Miranda, na noite de 14 de dezembro de 2024)
Autor: Paulo César Carbonari, Doutor em filosofia (Unisinos), associado da CDHPF, membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), ao qual a CDHPF é filiada.
Edição: A. R.