Interrogações fazem falta

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… a alegria está sempre ameaçada… para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.

Camus, A Peste, 1999, p. 269

O título faz uma afirmação [ainda que sem ponto final]. Constata que interrogações já não são tão comuns; adota o lado de quem as entende relevantes; formula um juízo indicativo de sua carência… e, ainda mais, que esta talvez seja a razão da sua própria irrelevância… viciosamente falando: a falta de interrogações leva à irrelevância da interrogação! [com uma exclamativa]. Está expressa a situação? [numa interrogativa].

A questão levanta a hipótese de vivermos um tempo no qual se evita ao máximo a interrogação e a reflexão anda escassa, senão ausente. E isso ocorre não porque teria havido um atrofiamento cerebral em consequência do uso excessivo de telas e algoritmos – ou talvez sim, por este motivo –, mas de cerco ao espírito, que passa a se proteger assentado em certezas e em tudo quanto for absolutamente absoluto e definitivamente pronto, dando vazão a fundamentalismos de todo tipo. Ainda haveria espaço para a vida do espírito? Eis a questão, melhor formulada.

A interrogação poderia ser não mais do que um simples sinal gráfico de pontuação, como qualquer outro. Mas, ela é muito mais. É uma questão [que é bem mais que uma pergunta], que denota uma dúvida, ainda mais, uma busca, na expectativa de resposta. Estaria na sua origem a palavra “quaestio”, já que seria uma figuração de sua primeira e última letras compostas “q” e “o”, que virou o “q” sobre o “o”: ? – assim, ou de ponta cabeça, como no espanhol, posto ao início e no final da frase interrogativa.

Victor Klemperer, que se dedicou a estudar a linguagem do Terceiro Reich (LTILíngua Tertii Imperii) (2009), mostra a análise de um filólogo que, tendo vivido o período, procurou entender como a linguagem foi usada para a manipulação ideológica pelos nazistas. Ele defende a tese de que a consolidação do nazismo foi acompanhada de sua dominação da linguagem que conseguiu permear o meio intelectual e popular: “o nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio das palavras, expressões e frases que foram impostas pela repetição milhares de vezes, e foram aceitas inconscientes e mecanicamente” (2009, p. 55).

Ele mostra o uso de certos termos pelo nazismo. É o caso do termo “liquidar” (liquidiert). Oriundo do campo dos negócios, com sentido de fechar, finalizar, transposto para o campo militar, acaba por “reificar” o inimigo, já que “liquidar” estava associado a eliminar os inimigos como coisas, bens materiais. Outro aspecto para o qual chama a atenção é o dar ordens, comandar, que era entendido como determinação superior inquestionável a ser cumprida cegamente (blindlings) transformando subordinados em automatizados, máquinas de cumprir ordens, acionados com sincronização (gliechshalten).

O filólogo também faz a análise do uso de siglas, muito comuns na linguagem nazista. Isso ocorre, por exemplo, com a sigla “SS”, com mostra no capítulo 11, intitulado “Limites mal definidos”, onde diz que “SS é, ao mesmo tempo, imagem e sinal gráfico abstrato, é transposição da fronteira para o lado pictórico, é retrocesso ao aspecto visual dos hieróglifos” (2009, p. 129).

Este mesmo capítulo é concluído com algo que tem relação direta com o que estamos tratando aqui. Diz: “Também neste caso os limites se confundem, surgem insegurança, hesitação e dúvida. Ponto de visa de Montaigne: Que sais-je, o que sei? Ponto de visa de Renan: o ponto de interrogação é o mais importante de todos os sinais de pontuação. É a posição de extremo antagonismo à teimosia e à autoconfiança nazistas” (2009, p. 131).

E, logo em seguida, arremata: “O pêndulo da humanidade oscila entre ambos os extremos, procurando o ponto de equilíbrio. Antes de Hitler e durante o período de Hitler afirmou-se inúmeras vezes que todo progresso se deve aos obstinados e todos os empecilhos se devem aos simpatizantes do ponto de interrogação. Não se pode afirmar isso com certeza. Mas se pode afirmar, com certeza, que mãos sujas de sangue são sempre de obstinados” (2009, p. 132).

O capítulo seguinte, 12, trata exatamente de “pontuação”, sendo que é nele que vai comentar como a linguagem nazista usa “ad nauseam” as “aspas irônicas” [não é o caso do uso de aspas que estamos fazendo agora] como recurso para fazer referência nada neutra a um adversário a ser rebaixado. Um recurso, aliás, ainda muito usual na chamada guerra cultural e nos discursos de ódio em nossos dias.

Uma das características do modo fascista de vida – tão comumente semelhante ao modo neoliberal de vida – foi caracterizado por Theodor Adorno como “ausência de consciência” (2003, p. 121) e de “consciência coisificada” (Verdinglichung) (p. 130). Ele também usa outras expressões, entre elas: “índole dos algozes” (p. 124), ideal da “severidade”, “véu da técnica” (p. 132), naturalização do “ser-assim” (p. 132), indiferença e falta de empatia (p. 134), individualismo (p. 134), neutralidade (p. 136) e “assassinos de gabinete” (p. 137). É exatamente em Educação após Auschwitz (publicado em 1967), onde diz que “a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório” (2003, p. 120) e que “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que tem de fundamental as condições que geram esta regressão” (2003, p. 119). Outro crítico, Walter Benjamin, na VII das teses Sobre o Conceito de História (1940) diz que“Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie” (2005, p. 70). Diagnóstico feito… na ausência da interrogação está a morte da consciência, da reflexão, da crítica… barbárie! Alertas potentes, nem sempre escutados.

Hannah Arendt também já tinha percebido a corrosão da consciência como parte da experiência nazista no livro-reportagem sobre o julgamentode Eichmann em Jerusalém (1999). Ela classificou o que assistia numa expressão que ficou famosa e polêmica: a “banalidade do mal”. Ela mostrou como a ausência do espírito reflexivo leva à resposta burocratizada e funcionalizada que, na verdade, busca “resolver problemas de consciência” invertendo a posição da vítima e do algoz, transformando o segundo na primeira: “em vez de dizer ‘que coisas terríveis eu fiz com as pessoas!’, os assassinos poderiam dizer ‘que coisas horríveis eu tive que fazer na execução dos meus deveres, como essa tarefa pesa sobre os meus ombros’” (1999, p. 122). A rigor, transforma algozes em heróis!

Outro diagnóstico vem de Dardot e Laval, em A Nova Razão do Mundo (2016), que mostra o “sujeito neoliberal”, a “subjetividade empresarial”, caracterizada como uma “subjetivação pelo excesso de si em si ou, ainda, pela superação indefinida de si” (2016, p.  357). Uma subjetividade cheia de si, mas ao mesmo tempo sempre insatisfeita, visto ter um gozo que está “além de si sempre repelido”. Um sujeito que precisa estar o tempo todo fazendo coisas, competindo com os outros – aliás não há outros, há outros coisificados, instrumentalizados – num realismo raso que nunca pode ir além do si mesmo, por si e para si mesmo, numa rotina do mesmo, a todo o tempo. Nada há fora da disputa e da competição, da acumulação, da eficiência, expressão e garantia de sucesso, de “realização”, que nunca pode parar e sequer perguntar pelos meios e menos ainda pelos fins implicados no “desempenho”. Tudo isso reduz a subjetividade à apreensão factual, quando não a dispensa, reproduzindo-se em “pós-verdades”, e “slogans”, estereótipos simplistas, que desestimulam (para ser mais exato, interceptam) todo tipo de parada, de silêncio, de sono, de ponderação, de hesitação, de introspecção, de reflexão… é o império do “doers” – parar é um risco pois pode alimentar o desejo de não seguir… e não dá para aceitar que há limites!

Adorno indica a superação destas condições pela formação da consciência para a reflexão e a autorreflexão crítica e para a resistência (2003, p. 122), já que, o “único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não participação” (2003, p. 125). Sugestão dada… recolocar estas exigências na mesa.

Em Ensinando a Transgredir, bell hooks pede que todos/as: “[…] abram a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e repensar, para criar novas visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma educação na prática da liberdade” (2013, p. 24).

Há caminhos… mas inacessíveis sem frear a “locomotiva”… há um trabalho ético, político e pedagógico urgente… recuperar o lugar e o tempo da interrogação…

Referências citadas

ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. 3. ed. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 119-138.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin:aviso de incêndio. Uma leitura das teses Sobre o Conceito de História. Trad. W. N. Caldeira Brandt [Tradução das teses por J. M. Gagnebin e M. L. Müller]. São Paulo: Boitempo, 2005.

CAMUS, Albert. A Peste. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

HOOKS, bell. Ensinando a Transgredir:a educação como prática da liberdade. Trad. M. B. Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem do Terceiro Reich. Trad. Miriam B. P. Oelsner. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

Autor: Paulo César Carbonari. Doutor em filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos (MNDH/CDHPF), educador social. Também escreveu e publicou no site “O pensamento tornou-se cego”: https://www.neipies.com/o-pensamento-tornou-se-cego/

Edição: A. R.

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