A exortação é clara, objetiva, suficientemente autoexplicativa e dispensaria um guia de leitura. Contudo, nem todos leram ou lerão a exortação. Para estes, esse guia pretende sinalizar seus pontos essenciais e, quem sabe, despertar o desejo de encontro direto com o texto.
A exortação apostólica Laudate Deum do Papa Francisco foi lançada, oficialmente, no dia 04 de outubro de 2023, por ocasião da festa de São Francisco e do término do “Tempo da criação”. A exortação é clara, objetiva, suficientemente autoexplicativa e dispensaria um guia de leitura. Contudo, nem todos leram ou lerão a exortação. Para estes, esse guia pretende sinalizar seus pontos essenciais e, quem sabe, despertar o desejo de encontro direto com o texto. Para os que leram, o guia pode ser uma ocasião de reavivar a memória de algo que não pode cair no esquecimento.
Decálogo orientativo:
1. Laudato Si’ 2. Tema. Problema. Destinatários. Inspiração. Laudate Deum (Louvai a Deus) pressupõe a Laudato Si’ que continua sendo a Encíclica insuperável em se tratando do cuidado da casa comum numa perspectiva sistêmica de ecologia integral. A exortação é mais modesta e trata do tema e do problema específico da crise climática. Laudato Si’, de 2015, havia tratado do problema da mudança climática, contudo, apenas como um dos problemas ecológicos atuais ao lado de outros. Agora, na exortação, esse é o tema único, pois o Papa percebeu que apesar dos alertas que vêm da ciência e que ele mesmo fez na Laudato Si’, não “estamos reagindo de modo satisfatório” para não chegarmos ao “ponto de ruptura”.
Os destinatários não são os bispos ou os fiéis católicos mas, como diz o subtítulo, a exortação é dirigida “a todas as pessoas de boa vontade”. Afinal, a situação é grave e os efeitos serão sentidos por todos em termos de “saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e em outros âmbitos” (n. 2). A exortação tem, novamente, São Francisco como inspirador que continua nos convidando a louvar a Deus por todas as suas criaturas.
3. Método e estrutura. A Laudato Si’ incorporou a forma latino-americana de pensar a partir do método ver-julgar-agir. O ver-julgar-agir reaparece, mesmo que de uma forma menos didática e clara que na Laudato Si’. Laudate Deum é elaborada em forma mais circular, misturando, às vezes, os momentos do método.
Contudo, os três momentos estão aí e na estrutura da exortação o método aparece nas seis partes que a compõe: 1) A crise climática global (Ver); 2) O crescente paradigma tecnológico (ver-julgar); 3) A fragilidade da política internacional (Agir); 4) As conferências sobre o clima (Agir); 5) O que se espera da cop-28 em Dubai? (Agir); 6) As motivações espirituais (Julgar). A seguir destacaremos o que nos parece ser essencial em cada uma das partes da exortação em cada momento do método.
4. Crise Climática. “Por mais que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática se impõem a nós de forma cada vez mais evidente. Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenômenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, à seca e a outros gemidos da terra, os quais são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que afeta a todos nós” (n. 5).
Assim o Papa descreve o que chama de crise climática, não como fenômeno natural, mas como fenômeno diretamente associado à atividade humana, de origem “antrópica”, que potencializa o aumento da temperatura global. Cada vez que a temperatura média global aumenta 0,5 graus centrígrados os fenômenos extremos também mostram sua cara feia. Se ultrapassarmos os 2 graus centígrados, então “as calotas glaciares da Groenlândia e de grande parte da Antártida se derreterão completamente, com consequências muito graves para todos” (n. 5).
Alguns negacionistas tentam minimizar esses fenômenos e as causas humanas dele. Dizem que o planeta alterna períodos de resfriamento e aquecimento e que não há nada que se possa fazer. Alguns até apelam para o fato que frios extremos também acontecem a todo instante e que, portanto, a narrativa do aquecimento global seria apenas isso, uma narrativa. Não se dão conta, diz o Papa, que os eventos extremos, inclusive de frios extremos, ao lado de secas, ou excesso de chuvas, são expressões da mesma causa: o desequilíbrio global causado pelo aquecimento do planeta. Só a falta de informação pode igualar tempo e clima. O tempo descreve as previsões meteorológicas de uma região em determinado momento, ao passo que o clima é a tendência duradora das condições meteorológicas a nível local e global que só se alteram em longos períodos do tempo. Outros culpam os pobres por “terem filhos demais”.
Contudo, diz o Papa, isso é um simplismo diversionista justamente porque quem mais polui são os ricos no interno dos países e os países ricos ao redor do globo. Ou a África, onde reside mais da metade dos pobres do mundo, será responsável pelo aquecimento global? É evidente que não. Outros ainda dizem ser preciso pensar nos postos de trabalho que se perderiam caso se passasse da atual matriz energética para energias limpas. No entanto, verdadeiro é o contrário. Postos de trabalho estão sendo perdidos exatamente dentro do sistema atual agravado pelo aquecimento global. A transição para formas renováveis de energia seria, inclusive, uma esperança de mais trabalho. É preciso pois, diz o Papa, acabar com as resistências e confusões. A origem “antrópica” da crise climática já não pode ser posta em dúvida. Há evidências científicas e os cientistas atestam que a mudança climática global coincide com “crescimento acelerado das emissões de gases de efeito estufa, especialmente a partir de meados do século XX” (n. 13).
Por fim o Papa diz, meio indignado, que se vê obrigado a dizer essas coisas óbvias “por causa de certas opiniões ridicularizantes e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica” (n.14). Não é prudente continuar duvidando nem do fenômeno da crise e nem da causa humana dela. Está na hora de assumirmos como definitivo que os danos do aquecimento já são realidade e que há risco evidentes de piorar. Assim, é urgente uma visão ampla, séria e responsável, pois os fenômenos não são isolados. E o Papa arremata com duas convicções que o tem acompanhado: “tudo está interligado” e “ninguém se salva sozinho” (n. 19).
5. O crescente paradigma tecnocrático. Na base da degradação ambiental, diríamos nós leigos, está o capitalismo e sua lógica de lucro e de tudo tornar mercadoria mas, o Papa, mais sutil e sofisticado, diz que na base está o “paradigma tecnocrático”. E o que ele entende por paradigma tecnocrático?
O Papa cita a Laudato Si´, que diz que se trata de “modo desordenado de conceber a vida e ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar” (LS n.101). E acrescenta dizendo que consiste em pensar “como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia (LS n. 105). A isso se soma a ideia de progresso infinito e ilimitado que tanto entusiasma os economistas e teóricos do mercado.
O problema, diz o Papa, é que os recursos naturais não são ilimitados. E o mais grave é o excesso de poder econômico e tecnológico nas mãos de alguns que tratam tudo e a todos como “meros recursos ao seu serviço”. Por conta disso é necessário repensar a utilização do poder para que dele advenha progressos para a humanidade e não apenas para alguns. Aumento de poder não acompanhado de valores, consciência ética sólida e uma espiritualidade não egocentrada, são um perigo para a vida humana e para o planeta (n. 24).
Contrariamente à postura do mercado, há de se reafirmar que “o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites” (n. 25) e uma mudança de mentalidade em que se pense o humano e a natureza “numa relação saudável e harmoniosa” (n. 27), superando o utilitarismo antropocêntrico desordenado que a tudo torna objeto descartável, é o que a humanidade precisa conquistar para não corrermos o risco de sermos aquilo que Soloviev, ironicamente, sentenciou: “Um século tão avançado que teve a sorte de ser o último”.
6. Fragilidade da Política internacional. Neste ponto o Papa apela para que as lideranças mundiais despertem do sono dogmático da inércia e mobilizem energias, recurso e estratégia para “reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais, sociais e sobretudo para consolidar o respeito aos direitos humanos fundamentais, dos direitos sociais e do cuidado da Casa Comum” (n. 42). A ONU e os mecanismos atuais já não dão conta. Para tanto é urgente uma nova política internacional que o Papa chama de “multilateralismo”.
O que seria o multilateralismo? Primeiro, pela via negativa: “não é conveniente confundir o multilateralismo com uma autoridade mundial concentrada em uma só pessoa ou em uma elite com excessivo poder” (n. 29). Pela via positiva: trata-se de pensar ‘organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais’ (n. 35).
Não há tempo a perder. Os desafios atuais requerem esforços para superar os interesses imediatos e individuais para garantir “a realização de alguns objetivos irrenunciáveis” como é o caso da erradicação da fome e do enfrentamento da crise climática. Para tanto, o multilateralismo proposto pelo Papa conta com a sociedade civil e as organizações não governamentais para que, dentro do “princípio de subsidiariedade”, junto com organismos internacionais de real autoridade e democratizados, se enfrentem os desafios globais e locais com colaboração e eficácia.
A velha diplomacia poderá ter sua relevância, mas será necessário unir esforços multipolares para dar conta da complexa realidade contemporânea. O Papa não tem a preocupação de dizer exatamente quem comporia e como seria o organismo multilateral, mas insiste na necessidade que surja. Provoca a sua criação e apresenta critérios para sua realização. O que importa é que o organismo multilateral seja dotado de real autoridade e represente o conjunto da humanidade para que se efetive uma maior ‘democratização’ na esfera global. Num tom crítico conclui dizendo que os velhos organismos precisam ser revistos e “deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes sem cuidar dos direitos de todos” (n. 43).
7. As conferências sobre o clima: avanços e retrocessos. Há décadas que os representantes de mais de 190 países se reúnem para tratar da questão climática. O documentário Uma verdade Inconveniente, de 2006, é uma boa síntese do debate para quem se interessar. O Papa não o cita, mas cita a história recente das conferências do clima e seus resultados. Tudo começou na conferência do Rio de janeiro em 1992. Foi a partir da Eco-92 que começaram a tomar corpo as conferências das partes (COP), o mais alto organismo mundial de decisões em torno à crise climática. De lá para cá, todos os anos, os 197 países membros, reúnem-se exclusivamente para tratar do clima. Algumas conferências foram um fracasso. Outras avançaram na consciência e em propostas para o enfrentamento do problema.
O Papa destaca a COP-3 de Quioto (1997) como uma conferência bem-sucedida. Dela surgiu o protocolo de Quioto que fixou como objetivo a redução das emissões de gases de efeito estufa. Além disso as partes se comprometeram a implementar políticas de redução dos efeitos da alteração climática, com investimentos por partes dos países mais ricos, pois são os que mais poluem. A COP-21 de Paris (2015) também foi um momento significativo pois estabeleceu “manter o aumento de 2 graus centígrados relativamente aos níveis pré-industriais, apostando em toda caso a ficar abaixo de 1,5 grau” (n. 48). Em linhas gerais o Papa diz que a questão fundamental é que os acordos não são efetivados porque os países ricos pensam mais em si do que no globo e, também, porque falta mecanismo “de controle, revisão periódica e sansão das violações” (n. 52).
8. O que se espera da COP-28 em Dubai? A bem da verdade, o Papa escreveu a exortação como uma profética e dramática sensibilização para a COP-28 (realizada em DUBAI de 30/11 a 12 de dezembro de 2023). De alguma forma ele queria convocar, motivar e exortar para a necessidade da COP-28 dar certo. Diz o texto: “Adotar uma atitude de renúncia a respeito da COP-28 seria auto-lesivo, porque seria expor toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos da mudança climática” (n. 53). A história das COP tem sido de pouco avanço real e o Papa se mostra preocupado pois, bem ou mal, é a instância internacional que pode dizer e fazer algo e propor estratégias que a sociedade civil e os governos possam levar a diante.
O Papa apela para que os líderes e estrategistas mundiais presentes na COP-28 tenham “coragem de efetuar mudanças substanciais” (n. 55), e que não confiem somente em “remédios técnicos” superficiais, que podem se reduzir à lógica “do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração que continuamos a alimentar” (n. 57).
O Papa provoca a mudança de mentalidade: “De uma vez por todas, acabemos com a atitude irresponsável que apresenta essa questão apenas como ambiental, ‘verde’, romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses econômicos. Admitamos, finalmente, que se tata de um problema humano e social em sentido amplo e em diversos âmbitos” (n. 57). E finaliza dizendo aos dirigentes da COP-28 que sejam responsáveis e eficazes: “Se há sincero interesse em fazer com que a COP-28 seja histórica, que nos honre e enobreça enquanto seres humanos, então só podemos esperar por fórmulas vinculantes de transição energética e facilmente monitoráveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso, e que se possa contar com o empenho de todos” (n. 59). Só na medida em que se pense mais no bem comum do que nos interesses contingentes de alguns países e empresas é que se pode restaurar a credibilidade da política internacional.
9. As motivações espirituais. Aos fiéis católicos, a exortação recorda as motivações espirituais que brotam da fé. E encoraja que outras religiões façam o mesmo.A fé, quando autêntica, não é fuga do mundo, mas imersão no mundo, comprometida em transformá-lo.
Do ponto de vista da fé o Papa destaca cinco pontos:
a) A criação é obra de Deus e a terra é Dele e “tudo o que nela há (Gn 1, 31). “A terra não será vendida definitivamente, porque a terra é minha, e vós sois moradores migrantes junto de mim” (Lv 25, 23). Disso brota a responsabilidade do humano inteligente para que respeite as leis da natureza e os “delicados equilíbrios entres os seres deste mundo” (LS, n. 68).
b) O conjunto do universo com suas múltiplas relações mostra a riqueza inesgotável de Deus. Preservar os indivíduos e espécies é, então, mostrar-se sábios, responsáveis e respeitosos com o Criador.
c) Jesus viveu plenamente o encontro com a natureza e a todo instante “detinha-se para contemplar a beleza semeada por seu Pai”. As criaturas não são apenas natureza, são antes sinais do amor do Criador que no filho Ressuscitado suscita em nós uma mudança de percepção, envolvendo misteriosamente cada um dos seres criados. “As próprias flores do campo e as aves que ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa […] O mundo canta um Amor infinito, como não cuidar dele?” (n. 65).
d) Superar o antropocentrismo desordenado que compreende o humano isolado do restante da criação e pensar um “antropocentrismo situado”, reconhecendo que estamos todos “unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal […] Assim, acabamos com a ideia de um ser humano autônomo, onipotente e ilimitado (n. 67, 68).
e) Não é sem importância a mudança de hábitos pessoais, familiares e comunitários, mesmo sabendo que os grandes e principais responsáveis pela crise climática são as empresas, os setores políticos e administrativos dos Estados e as grandes corporações. Os exemplos que “vêm de baixo”, podem criar um processo de mudança que transforme nossa relação com os outros, com a natureza e com os animais (n. 69, 70, 71).
10. Apreciação. A exortação do Papa é um alerta e apelo para que a humanidade acorde. A acomodação e os interesses imediatos dos agentes econômicos, sociais e eclesiais têm feito ouvidos moucos à voz profética do Papa Francisco. Ele tem feito a sua parte. Tem falado e insistido e com isso ele salva a sua alma. Não basta, contudo, que o Papa “salve sua alma”, pois “ninguém se salva sozinho”, além do que, é preciso salvarmos os corpos de todos, enquanto estivermos vivos. Para tanto, o que podemos e devemos fazer?
Autor: Gilmar Zampieri. Também publicou no site “Fratelli Tutti: as religiões a serviço da fraternidade no mundo”: https://www.neipies.com/fratelli-tutti-as-religioes-a-servico-da-fraternidade-no-mundo/
Edição: A. R.