Mais uma cena de morte

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Há urgência em tomarmos atitudes eficazes
no combate e na denúncia de qualquer forma
de preconceito, sobretudo essa forma que mata negros,
de modo banal, como se descartam coisas inúteis. 

“Me ajuda, Milena”, foi a última vez que a mulher ouviu a voz suplicante do marido, massacrado no mercado Carrefour, aqui em Porto Alegre. Ontem, dia 19 de novembro de 2020, ao ir às compras, por algum desentendimento, João Alberto foi dominado, espancado e morto, no estacionamento do mercado. 

A razão furiosa dos seguranças demonstrou o preconceito, o racismo, a intolerância e a discriminação presentes nessas mentalidades, a serviço da razão branca, dominadora. As lágrimas silenciosas que corriam pela face da mulher nos tocam como sensibilidade e como senso de justiça. Chega desse aparato de igualdade e liberdade para todos. 

Temos que fazer cessar o ódio e o racismo, que já sabemos estrutural. Não precisamos mais de explicações de especialistas, nem de estatísticas que mostram os números das desigualdades racial e econômica. Precisamos acabar com as mortes pela decisão dos que se acham superiores, por serem brancos e ricos, ou a serviço deles.

Há urgência em tomarmos atitudes eficazes no combate e na denúncia de qualquer forma de preconceito, sobretudo essa forma que mata negros, de modo banal, como se descartam coisas inúteis. 

Esse Brasil de todos nós, mais uma vez vai à cena pública como retrato de vergonha e de discriminação racial. Um país multirracial, caminha perdido em seus rancores, facilitando as ações violentas, estimuladas pelos discursos de ódio e de exclusão. 

Ao ouvirmos expressões de que negros são preguiçosos ou medidos em arroubas, temos a exata dimensão de uma razão discriminatória, abusiva, covarde e cruel, própria de inteligências medíocres e opressoras.

As empresas, preocupadas com seu patrimônio, contratam seus guardas e seguranças e os orientam para estarem atentos a qualquer atitude suspeita.

Quem desperta maior cuidado, ao entrar em qualquer estabelecimento comercial? O negro ou o branco? Já sabemos a resposta, porque temos consciência de que a sociedade branca quer garantir sua supremacia e evitar os possíveis prejuízos, que os negros possam produzir. Então, os brancos podem ir às compras e voltarem sossegados para suas casas. Já os negros precisam tomar cuidado, para não despertarem a atenção dos guardas, a serviço de seus senhores. Esse cuidado deve estar nas roupas, nos gestos e até mesmo nas falas, pois, do contrário serão seguidos pelos que vigiam o patrimônio e a ordem.

 E assim foi ontem no interior do Carrefour. João Alberto foi retirado do interior do mercado e arrastado para o massacre. A barbárie foi filmada e noticiada. Não há dúvidas, a intenção foi de extermínio. Afinal, era mais um negro perturbando a ordem e o patrimônio. As vozes que pediam para cessarem as agressões, não foram ouvidas. 

Os seguranças estavam envolvidos no rito da morte. Precisavam mostrar eficiência. O pedido de ajuda, feito à sua mulher não pode ser atendido. Ela nem conseguiu chegar junto a seu corpo, preso pelas mãos ferozes dos seguranças, que já haviam decretado o fim de sua vida. Ele não deveria viver. A morte lhe fora destinada pela vontade da razão branca. 

Milena e João Alberto não voltaram juntos para casa, como pretendiam. Ficou um corpo no estacionamento, expressão de uma razão covarde, fruto de um poder vil, discriminatório, bárbaro. E essa cena de morte foi na véspera do Dia da Consciência Negra. 

Que triste, para não dizer outra coisa…

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