Nos cômicos desvios e extravios cotidianos,
as âncoras de um projeto de expropriação camuflada.
Panem et circenses, a conhecida política do Pão e Circo da Roma Antiga, constituía-se em uma estratégia metodológica de garantir fidelidade à ordem social determinada pelo elite imperial e apoio da massa popular. Quando em momentos críticos, o império organizava espetáculos, por vezes sangrentos, ou distribuía “presentes”, garantindo a aceitação das decisões imperiais, sobretudo à população mais humildes (que era, também, sempre a maioria e, por conseguinte, também precisava ser mantida à rédea curta).
Estas ações, política e minunciosamente pensadas, utilizavam-se da manipulação de figuras (como os gladiadores, cavaleiros, domadores e afins) para induzir o povo a um estado de encantamento e estarrecimento. Provocavam, estas figuras, suspiros, aplausos e eufóricos gritos da plateia, sempre atenta ao que era posto, pela elite, no centro da arena. Milhares de olhos sobre a arena. Milhares de vozes esbravejando apoio ou contestação ao que se dava na arena. Toda atenção à arena: mínima ou nenhuma atenção aos bastidores.
Nesse mesmo sentido, se poderia falar de um poderoso e milenar recurso cênico: a marionete. Em sua origem etimológica, marionnette (do francês) alude a algo (normalmente um boneco) que é movimentado (conforme suas articulações permitem) por meio de cordéis que são, por sua vez, manipulados por alguém oculto. Como não aplaudir e encher o rosto de encanto ao ver um espetáculo de marionetes? Como não se prender na confusa tentativa de compreender como pode, um boneco, fazer tantos movimentos e com uma dinâmica que parece dar vida ao mesmo? Quem nunca se encantou com os habilidosos malabarismos de um/a titereiro/a? O fato é que, usando-se de mecanismos de controle, um/a titereiro/a habilidoso/a deixa perplexo/a qualquer espectador/a que, tentando entender como pode um boneco ter tanto dinamismo e capacidade de articulação, extasia-se, num espanto paralisante.
A arte das marionetes
As marionetes são bonecos ou fantoches que podem ser manipulados através de cordas posicionadas em locais estratégicos do corpo do boneco, de modo que este possa ser movimentado por uma pessoa.
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Um fato histórico e um recurso cênico que, assim como tantos outros elementos da vida humana, ganham novas formas e finalidades. Algo que ambos têm em comum, é o fato de que, enquanto se focam as atenções do público (sobretudo daquela população mais humilde cultural e economicamente) numa cena manipulada, todo um outro conjunto de acontecimentos (que são os que realmente importam para quem está manipulando os cenários) passam despercebidos pela atônita (mas controlada) plateia. A cena mostrada ao público, revela apenas e somente aquilo que a estrutura dominante quer que seja mostrado. E além disso, determina, através de diversos recursos e instrumentos, o ponto de vista a partir do qual aquela cena deve ser vista, entendida, comentada, compartilhada, reproduzida.
Todos esses recursos circenses e teatrais (aqui referidos metaforicamente) são, também, poderosas estratégias políticas. A “infeliz” fala de um representante ministerial, a prisão de um “intocável”, o aperto de mãos para selar uma “parceria”, uma denúncia digna de “plantão global”, indicações “técnicas” (“afinal não se fazem mais indicações políticas”), plantações de laranjas, enfim… Todo um conjunto teatral muito bem arquitetado (e aqui não há espaço para principiantes ou amadores/as) que, além de alimentar a fantástica e viralizada indústria de memes, mobiliza a atenção do público para os fatos apresentados sem que esse perceba que, na verdade, não passa de um marionete às mãos do/a titereiro/a.
Nunca a humanidade teve tanto acesso às informações como podemos usufruir no contexto contemporâneo. Mas, este acesso e disponibilidade não significam, por si só, condição crítica para perceber a realidade. Como construir espaços de discussão, abertos, democráticos, críticos e construtivos, de coesão social para o enfrentamento desse cenário de despolitização e apatia mediada? O que estamos vendo? Como estamos vendo? O que estamos lendo? Como estamos lendo?
Em primeiro lugar, talvez, reconhecendo que esse processo acontecerá apenas coletivamente, como expressão popular organizada.
Enquanto o maremoto se aproxima, estamos adestrados a focar toda atenção à marola. Causa comoção nacional um 7×1 alemão, mas causa euforia e sentimento de desenvolvimento, ordem e progresso os retrocessos sociais, retiradas de direitos do/a trabalhador/a, a expropriação mineral e de outros bens, a subjugação do cultivo da terra aos interesses convencionais de multinacionais. Tudo bem o/a brasileiro consumir, em média, 7 litros de veneno por ano se isso atender aos desejos do Tio Sam (e de outros tantos tios, primos e a lista é longa).
Mas, ficamos extasiados/as e perplexos/as com o teatro nas arenas produzidas por certos setores da mídia. Salve, pátria amada! Viva a marola!