Direitos iguais para todas as crianças,
independente da cor da pele.
Crianças negras também precisam estudar.
Crianças negras também acordam
com o nascer do som.
Tomaram a boneca de cabelos crespos da menina porque naquela escola não podia se brincar de boneca na hora do recreio, mas a menina viu outras garotas iguais a ela brincando com as suas bonecas e ficou no canto da parede, sozinha, a olhar para o jardim florido no pátio. Todos os dias tomavam uma coisa dela. Todos os dias tomavam a sua criancice e nunca pôde experimentar uma travessura porque a colocavam de castigo.
Que difícil é a infância para uma menina negra, pobre, estrábica e gordinha! Ninguém prestava atenção na sua farda limpinha e nos seus sapatos vermelhos. Tudo o que sempre ouviu era que devia comportar-se como as outras meninas. Era sempre deixada de lado, ninguém a queria ouvir. Não podia falar que seus avós foram escravos de brancos ricos e nem do seu pai que era um negro bonito e salvava vidas todos os dias. Dizia a professora quando ela falava dos avós que nunca ninguém foi escravizado no Brasil e que isso é uma coisa monstruosa. As crianças abriam as bocas, espantadas com a monstruosidade de espancar uma pessoa com um chicote até ela desmaiar, contava ao léu a menina quando podia, escondida da professora.
Certo dia, essa menina brigou com a amiguinha branca mais querida da escola. As duas choravam. As duas ficaram de mal uma da outra. Mas foi a menina branca quem foi acalentada pelas professoras e levada para ver o jardim. A menina negra ficou sozinha com a sua dor. Não havia ninguém para confortá-la. Ninguém para dizer-lhe uma palavra de carinho. Se chegasse em casa e dissesse aquilo para a mamãe era capaz dela vir na escola e aprontar a maior confusão.
A mamãe não gostava que a tratassem diferente. Aquela era a única escola da sua cidade onde os meninos aprendiam outro idioma e seus pais podiam pagar para que estudasse ali. Porém, a menina se via em meio a tantas outras crianças brancas que perdeu a sua identidade e começou a agir como tal, desprezando os seus amiguinhos da rua só porque eram negros iguais a ela e começara a achar no seu pequeno pensamento que negros não são crianças, não são nada. Só dão trabalho. Era melhor ser branco que podia brincar do que quisesse onde quisesse.
Nenhuma outra criança da escola sabia o que era castigo. Só aquela menina negra conhecia a dor de ficar quatro horas presa num banheiro sem luz por ter tomado o lápis do amiguinho branco que não queria emprestar-lhe. A sua primeira travessura na escola. Apesar dos pedidos de desculpas, ninguém a ouviu, e a deixaram sozinha naquele pequeno espaço por quatro horas.
Essa menina cresceu, tornou-se uma mulher, profissional dedicada, mas carrega consigo o medo da noite, ou seja, o medo do escuro. Só dorme com a lâmpada ligada. Agradece sempre aos Orixás quando é noite de lua cheia e o céu fica claro, e assim pode dormir com a janela do seu quarto aberta… a menina foi brutalmente forçada a ter medo da noite. Que triste era não poder contemplar as estrelas!
O que fazem com as nossas crianças negras nas escolas?
Nunca saberemos se elas não nos contarem ou até que aprontem uma travessura e seus pais sejam chamados. De resto só as paredes podem dizer como sofrem com a opressão da branquitude. À criança branca, toda atenção é dedicada. A professora pega na mão da criança branca para ela aprender a escrever, já na mão da criança negra algumas professoras acham que vão se sujar se pegarem em suas mãos. Isso é triste, mas é verdade. Ocorre, principalmente, nas escolas elitizadas do nosso país. Em Fanon encontramos a expressão sincera que define o que dissemos acima
Eu sou branco, isto é, me pertencem a beleza e a virtude, que nunca foram negras. (tradução livre) [1]
Assim como as crianças brancas, as crianças negras podem ser virtuosas se tiverem uma boa educação em casa. Não se define caráter por cor da pele. O caráter da criança se forma ao longo dos anos baseado nas pessoas ao seu redor e naquilo que vive e experiencia. Também é bela por natureza, igual a toda criança.
Diferente da Menina Bonita do Laço de Fita da escritora Ana Maria Machado, ninguém achava a nossa menina bonita. Ela nunca teve um coelho que a amasse. Só era amada pelos seus familiares. Se chegava na escola com tranças nos cabelos as demais meninas começavam a sorrir dela, dizendo “olha a negrinha de trança”. A sua professora nunca lhe disse que as suas tranças eram bonitas. Ela vestia os vestidos mais bonitos de todas as meninas da escola, mas ninguém nunca viu isso, aliás as pessoas só viam que era preta, a escurinha metida que estudava numa escola de mensalidade cara feita para crianças ricas e brancas que podiam pagar.
A nossa menina tinha o sonho de ser uma princesa, mas como não nascera numa família de reis e rainhas, apesar dos seus pais poderem comprar tudo o que lhes pedia, eles nunca puderam realizar o seu sonho. Contudo, havia a chance de ser a princesa da quadrilha da escola. E a menina vendia todos os caroços de milho que a professora lhe dava numa folha de papel desenhados. Quanto mais vendesse mais aumentavam as suas chances de tornar-se a princesa da quadrilha. Todos os familiares, parentes e amigos compravam. Todos os dias ela trazia uma folha de caroços de milho novos para casa. Na certeza de que seria a princesa mais bonita da escola naquele ano. Só que nunca se procurou saber o motivo da menina jamais chegar a ser princesa e ficar em último lugar na foto das meninas que participaram do evento. O seu sonho nem de brincadeirinha nunca se realizou. As meninas brancas eram sempre as três primeiras princesas ela ficava em quarto lugar.
Nessa escola, era proibido falar de algumas religiões e a menina negra nunca pôde falar dos Orixás que tanto amava, uma vez tentou falar em Iemanjá e foi repreendida com um “Não é a sua vez de falar”. Ela nunca soube quando chegou a sua vez de falar, porque nunca lhe deram voz, era apenas ouvinte do que não gostava. Colocavam à força no pensamento da menina que devia amar a religião católica e todos os dias ela ia junto com as outras crianças rezar na igreja com um terço entre as mãos.
Apesar de não entender muito por que fazia aquilo, aprendera a ser comportada para não chamar mais atenção, bastavam as suas tranças. Ela não compreendia o ensino daquela escola onde as perguntas das crianças brancas eram sempre respondidas, as dela nunca tinham respostas. Sentia-se sozinha dentro daquela sala de aula de vinte e cinco alunos. Todos brancos. Até a professora era branca igual nuvem. A menina era vista como uma coisa feia na escola, uma estranha, algo que nem ela mesmo sabia o que podia ser. É isso o que encontramos em Fanon
Se eu sou negro não é por obra de uma maldição, senão porque havendo afirmado minha pele, posso captar todos os eflúvios cósmicos. Eu sou verdadeiramente uma gota de sol na terra. (tradução livre)[2]
Não era nenhum tipo de monstro ou bicho-papão só porque era negra e de vez em quando deixava seus cabelos crespos crescerem bem muito. Sim, a menininha era uma gota de sol na terra e na sua casa junto com os seus familiares, aquela que era educada e gentil para com as pessoas e costumava dá esmolas aos mais pobres que batiam à sua porta. Aquela que pintava o sol de preto igual a cor da sua pele, para puxá-lo pra dentro de si e acender um dia onde a opressão da branquitude lhe devolvesse a sua infância.
Para não citar apenas a dor e o sofrimento dessa menininha, quero falar de outra que recentemente viveu uma situação constrangedora, porque os brancos gostam de constranger as crianças negras. Essa menininha de quem vou falar agora estudava numa grande e cara escola do nosso país. A grande maioria dos estudantes era de cor branca. Na sua turma só ela era a negrinha metida, como lhe chamavam os maiorzinhos. De repente, foram encontrados piolhos na sua cabeça e aquilo foi um espanto enorme para a escola! Criança com piolho? Falta higiene em casa! É que dá ter um monte de cabelo pixaim que quase não se vê o rosto! Vai passar para as outras crianças! Precisamos fazer algo urgente!
O problema do piolho nas escolas é algo comum para quem conhece a educação infantil. Algumas crianças sofrem mais com piolhos por eles serem endêmicos, ou seja, para medicina é uma doença infecciosa que ocorre habitualmente e em certas regiões apesar dos cuidados dos pais. É só começarmos a falar em piolhos que a nossa cabeça começa a coçar.
O piolho também é uma doença chamada Pediculose provocada pela infestação de Pediculus humanus capitis (piolho) e lêndeas (ovo do piolho) no couro cabeludo, um parasita comum que acomete preferencialmente crianças em idade escolar.[3]
O piolho é um inseto parasita que se alimenta do nosso sangue extraído do couro cabeludo. É um bichinho preto que anda nas cabeças das crianças. O sintoma clássico da Pediculose é o “prurido”, ou seja, a coceira no couro cabeludo. O piolho é transmitido principalmente através das brincadeiras entre crianças e compartilhamento de objetos de uso pessoal, como o pente ou a escova de cabelos. Raramente necessita-se cortar o cabelo. O piolho não pula e nem anda. A sua transmissão maior é pelas brincadeiras entre as crianças. Seu tratamento é o uso de produtos farmacológicos como sabonetes apropriados para a doença.
Essa doença deve ser tratada com cuidado e responsabilidade pela escola. A criança não deve ser isolada completamente das outras. Em primeiro lugar, é preciso que os pais sejam avisados do que está acontecendo e tomem as providências.
A criança não deve sentir-se diferente das demais só porque tem piolhos. Toda criança na idade escolar pode ter piolhos. A cautela se faz necessária nessa hora. Só que com a nossa menininha citada acima a coisa foi diferente. Colocaram-na sentada longe das outras crianças na sala de aula e foi proibida de brincar na hora do recreio. Fazia o seu lanche sozinha. Ninguém chegava perto dela. Quando coçava muito a cabeça, todo mundo se afastava mais ainda com medo dos piolhos saírem voando pela sala de aula. Fez tratamento, mas seu caso era especial. Era uma infecção crônica. Apesar de ser medicada, os piolhos iam e vinham toda hora. Diante disso, a sua mãe que cuida dela sozinha porque o papai sumiu, achou melhor dá um tempo e por obra dos Orixás as aulas começaram a ser remotas, o que a menininha achou maravilhoso. Assim nunca mais ninguém teria medo de ficar perto dela.
O que a mamãe vai fazer quando as aulas presenciais voltarem? A menininha agora estuda numa nova escola. Mas e se tudo for igual?
Há brancos por todos os lados nesse país. Somos a minoria e cada dia estão matando as nossas crianças seja com balas perdidas seja com desprezo. O desprezo é o maior assassino das nossas crianças nos dias atuais, principalmente das negras. A morte não é só a física, mas a espiritual também. Aquela em que a criança é esquecida por todos. Para muitas crianças, o ensino remoto foi a melhor coisa que inventaram, porém isso não é assunto para nosso ensaio.
Nos faltam políticas públicas de respeito e aceitação da criança negra nas escolas elitizadas do nosso país. A maioria delas é oprimida e sofre preconceitos os mais diversos na escola tanto privadas quanto públicas, sendo nessa última menor. Dizem que criança é tudo igual, não é o que me parece. Criança pode ser igual até antes de conhecer os comportamentos e palavras dos adultos, depois passam a agir iguais a eles.
Levamos para a escola o que vemos em casa. Se nossos pais humilham a mulher negra que cuida da casa porque é preta tendemos a humilhar e desprezar todas as outras pessoas de cor preta. Se nos foi ensinado em casa que negros não cagam na entrada, mas podem cagar na saída, também levamos isso para o nosso dia a dia. Se para um adulto negro é difícil conviver com amigos brancos numa universidade privada, imagine para uma criança negra que não sabe ainda como se defender e o seu espírito está em formação. O que levará para a vida adulta essa criança negra? Que lembranças escolares ficarão marcadas na sua pequena alma na idade adulta? A da opressão e do desprezo.
Os direitos universais da criança precisam ser levados à sério no nosso país, principalmente pelas escolas. Direitos iguais para todas as crianças, independente da cor da pele. Crianças negras também precisam estudar. Crianças negras também acordam com o nascer do som.
“Cultura de direitos humanos se tornará uma realidade quando mudarem substancialmente as práticas da educação no Brasil. Todos os envolvidos na educação (gestores, professores, equipes diretivas) devem mudar as suas posturas autoritárias, para promover a democracia, o respeito e a consideração de todos como seres aprendentes”. (Nei Alberto Pies). Veja mais aqui.
Eu sou o sol!
Não me oprimam!
Toda criança tem piolhos!
Referências
FANON, Frantz. Piel Negra, Máscaras Blancas. Editorial Abraxas, Buenos Aires, 1973.
6 recomendações importantes sobre o piolho na escola. Disponível em https://www.crechesegura.com.br/6-recomendacoes-importantes-sobre-piolho-na-escola/. Acesso em 12 de agosto de 2020.
[1] FANON, Frantz. Piel Negra, Máscaras Blancas. Editorial Abraxas, Buenos Aires, 1973. p. 37.
[2] FANON, Frantz. Piel Negra, Máscaras Blancas. Editorial Abraxas, Buenos Aires, 1973. p. 37.
[3] 6 recomendações importantes sobre o piolho na escola. Disponível em https://www.crechesegura.com.br/6-recomendacoes-importantes-sobre-piolho-na-escola/. Acesso em 12 de agosto de 2020.