Mês dos professores: histórias de quem vive a profissão sem “superpoderes”

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É importante entender a docência como um trabalho real e não idealizá-la. Saiba quais os principais desafios que os educadores têm enfrentado e possíveis caminhos para superá-los. Veja matéria da NOVA ESCOLA, assinada por Carol Firmino.

A frase “nem todo herói usa capa” é um daqueles clichês que frequentemente se utiliza para definir o professor da Educação Básica no Brasil, em especial na rede pública. Peça-chave no processo de ensino e aprendizagem, sua atuação quase sempre extrapola a sala de aula, a exemplo dos anos de pandemia, quando muito se falou sobre a determinação e a resiliência desses profissionais para manter crianças e adolescentes estudando. 

De fato, o trabalho dos professores nesse período pode ser comparado à jornada do herói em um filme de ação: eles se reinventaram, criaram novas rotinas e resgataram os alunos que precisavam de apoio. No entanto, interpretar o magistério como uma missão divina implica em negligenciar dificuldades presentes no dia a dia. Algumas se arrastam por décadas, como lacunas na formação inicial e continuada, baixos salários e necessidade de jornadas múltiplas, o que muitas vezes acarreta problemas de saúde mental e contribui para a baixa atratividade da carreira docente. 

Para Andréa Gouvea, professora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais (Nupe) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), esses obstáculos fogem de soluções individuais, pois representam demandas institucionais.

“Vivemos um momento de muita pressão sobre os professores. Espera-se que eles reajam no sentido de ter autonomia e resiliência para resolver as questões, mas nem sempre há condições para isso. São [problemas] estruturais que a gente conhece há muito tempo. 

Para saber mais sobre esses desafios da carreira docente, NOVA ESCOLA traz as histórias de quatro professores da rede pública brasileira. Os relatos de Lígia, Roberta, Marcella e Guilherme se conectam pela necessidade e urgência de políticas que valorizem a profissão docente. 

Desafios de uma novata

Lígia Veiga Santos é professora adjunta na rede pública de Santos (SP). Ela, que concluiu o curso de Biologia há cinco anos e formou-se em uma graduação semipresencial de Pedagogia em 2023, conta que o “chão da sala” tem revelado situações desafiadoras. Lígia fala do Atendimento Educacional Especializado (AEE), que, para ela, requer total envolvimento e aprendizado por parte do professor. “Não vejo que estamos preparados para proporcionar um ambiente 100% inclusivo. Então, nesse caso, considero que participar de formações continuadas é muito importante.”

Além disso, a ideia de que a escola é um organismo vivo e dinâmico, como ouvia nos relatos durante a graduação, se confirmou. “Todo dia é uma coisa diferente, é a vida acontecendo naquele espaço, independentemente dos professores e de quem mais trabalha ali”, relata. Diante disso, a professora acredita que não importa o quanto se estude sobre condições socioeconômicas, educação inclusiva e realidade das escolas no Brasil. “Cada região, cada bairro na cidade tem suas características específicas, e o educador nem sempre está preparado para o que vai encontrar.”

Na opinião dela, há no Brasil uma oferta elevada de cursos de licenciaturas e de Pedagogia que não contemplam o que se espera de um futuro professor, com horas de estágio insuficientes e pouco espaço para lidar com as questões reais da escola. “Eu acabei de entrar na rede pública e não sou professora titular ainda, então costumo substituir aulas dos meus colegas e trabalhar projetos paralelos. [Como não estou com os mesmos alunos todo dia], é um desafio ganhar a confiança deles, mas tenho adquirido um olhar mais compreensivo aos poucos”, explica.

Andréa, da UFPR, destaca que essa passagem do período de formação para o mercado de trabalho está presente em qualquer profissão, porém aqui tem um problema mais profundo, que vai ao encontro do que diz Lígia. “Atualmente, muitas licenciaturas são concluídas no formato de ensino a distância. Isso atrapalha o cumprimento de regras e diminui oportunidades de estágio, atividades formativas, extensão e outras que favorecem a formação da prática profissional. É claro que é possível fazer uma boa graduação EAD, mas não a baixo custo e com carga horária reduzida”, reforça a especialista.

Para ela, um dos caminhos é melhorar a relação entre as universidades e as escolas de Educação Básica. “O professor iniciante precisaria encontrar certa estabilidade já no início, com tutorias, diálogo com os mais experientes e [a intensificação de] programas de residência pedagógica, incluindo os novatos nos grupos de discussão, nos planejamentos etc.”

Leia também: Se resta esperança na educação é porque professores resistem e existem, inventam e reinventam a luta e a pedagogia, carregam sonhos e movem-se pela utopia do direito de todos e todas as crianças, adolescentes e jovens à educação de qualidade, à aprendizagem e desenvolvimento integrais para uma vida de direitos, sem violência. (Autora Sofia Cavedon) www.neipies.com/do-apagao-a-esperanca-viva-as-professoras-e-os-professores/

Jornadas múltiplas e exaustão

A falta de valorização da carreira docente é outro grande desafio da profissão. Torná-la mais atrativa envolve, entre outros fatores, a revisão dos salários. “Muitos colegas adotam jornadas múltiplas a fim de garantir que não trabalhem apenas para pagar boletos”, diz Roberta Duarte da Silva, professora de História dos Anos Finais do Ensino Fundamental em duas escolas da rede pública de Jaboatão dos Guararapes (PE).

Docente substituta no curso de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Roberta já atuou na rede privada, além de trabalhar com a formação de professores. Atualmente, sua carga horária é de 180 horas mensais na Educação Básico e de 40 horas mensais na UFPE. “Principalmente na Educação Básica, a gente precisa dar conta de dias muito cheios ou ter mais de um vínculo para que o salário nos proporcione uma melhor qualidade de vida. Parece até contraditório: trabalhamos muito para ganhar melhor, mas não conseguimos usufruir por falta de tempo”, observa. 

Entre os seus principais desafios, a professora menciona a exaustão mental, física e psicológica: “É muito cansativo dar 12 ou 15 aulas por dia, às vezes nos três turnos. Essa é a minha realidade em dois dias da semana e eu fico esgotada”.

Ela conta que o tempo para pensar em uma aula e organizar a rotina vai para o final de semana, o que faz com que comece a segunda-feira mais cansada. Roberta soma a esse cenário a própria estrutura das escolas, lecionando em salas quentes, com “a voz disputando espaço com os ventiladores”, e a ausência de suporte psicológico, principalmente no pós-pandemia. 

Andréa defende que não há uma solução individual para isso. Diante da necessidade de jornadas múltiplas, os professores deveriam encontrar nas escolas, pelo menos, espaços que valorizem o planejamento. “Existe um tempo de hora/aula para que o professor olhe a sua disciplina sozinho e de forma coletiva. Então, aquilo que meu colega começou, eu posso dar continuidade e tornar mais fluido. Mas, muitas instituições não têm locais onde esse indivíduo possa sentar e estudar”, aponta. “Às vezes, temos uma sala dos professores pequena e que precisa abrigar 15 pessoas. Como ele vai se concentrar e fazer um relatório?”, questiona. 

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Todos sabem como melhorar a educação. Todos sabem como dar uma boa aula e quais assuntos deveriam ser ensinados. Menos os professores. (Autor Aleixo da Rosa) www.neipies.com/professores-nao-sabem-nada/

Burocracias pedagógicas

A pedagoga Marcella Campos, pós-graduada em Alfabetização e Letramento, é educadora na rede pública de Santos (SP). Ela também atua com a formação de professores alfabetizadores e trabalha com mídia social em um colégio particular na mesma cidade. 

Além da jornada de trabalho em mais de uma escola, e a partir de sua experiência com alfabetização, ela pontua que certas burocracias pedagógicas a que os educadores são submetidos deixam a rotina engessada. “Nós precisamos de um número x de atividades para guardar nas pastas das crianças e temos que cumprir a apostila até o fim. [Na Educação Infantil], isso tinha que acabar. Se há tempo para trabalhar apenas materiais prontos, fica mais difícil desenvolver projetos inovadores e com boa sequência didática”, argumenta.

Segundo ela, essa é uma ideia que está enraizada na nossa cultura: “[As pessoas pensam] que as atividades precisam ter aquela cara de [material de] ‘escolinha’ [a exemplo dos ditados, das listas]. Se eu coloco uma folha em branco na prancheta e peço para o aluno observar os pássaros e desenhar a cor das penas, isso também é uma produção de texto, mas tende a receber valor menor”, reflete Marcella. 

“Às vezes, esbarramos na sensação de que, se não é uma atividade ‘tão escolar’, não é uma atividade, e é isso que estamos tentando quebrar. Não faz sentido a criança voltar para casa com uma pasta cheia de papéis, se a escrita não for trabalhada de maneira que tenha função social e não tiver o engajamento do aluno em sala de aula”, completa. 

A especialista Andréa explica que o Brasil incorpora a perspectiva de pluralismo de concepções pedagógicas, o que possibilita múltiplas maneiras de  construir o processo de ensino e aprendizagem. Ter registros do trabalho desenvolvido em sala de aula ajuda a monitorar o desempenho do estudante, orienta, mas isso não pode ser mais importante do que o aprendizado. “O problema é que [quando se trata de alfabetização] estamos falando em 5.560 redes de ensino e milhares de instituições pensando em formas de controle”, alerta. Por isso, ela diz que é necessário que o sistema [e a própria gestão] confie no professor e ofereça autonomia para que ele decida a frequência dos registros – algo que não acontece quando o foco se torna controlar o resultado e preencher burocracias. 

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Documentos em excesso e plataformização da educação

Quando se trata das escolas em tempo integral, uma série de relatórios, atas de reuniões, diário de bordo e planos de ensino estão previstos. “Além de dar as minhas aulas, eu tenho que produzir documentos. E não são poucos”, considera Guilherme Falcão Porto, professor do 6º ao 9º ano na rede pública de Santa Lúcia (SP).

“Agora que é final de bimestre, temos que fazer o plano de aulas que vai nortear o trabalho pelos dois meses seguintes. Se o aluno tem nota vermelha, fazemos um relatório individual, apontando as dificuldades dele. Há ainda um plano de nivelamento, em que olhamos para as habilidades que o aluno precisa recuperar”, conta Guilherme.

Ele também cita a Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo Geral (ATPCG), a Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo por Área (ATPCA) e, agora, a ATPCG da Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação do Estado de São Paulo (EFAP), com vídeos e perguntas para responder. “Tudo isso e outras coisas dentro dos nossos horários de estudo – entre 14h e 16h”, descreve. 

Guilherme é responsável pelos componentes de Tecnologia, Orientação de estudo e Práticas experimentais, o que significa que ele multiplica todos esses processos por três: “É uma sobrecarga imensa, porque a gente tende a passar oito horas dentro da escola e mais quatro horas em casa preparando a aula.”

Na opinião de Andréa, é papel das equipes gestoras filtrar o que é realmente indispensável. “Há um excesso de relatórios sufocando o tempo dos professores. Então, precisamos pensar o que se deve fazer individualmente e o que é possível padronizar”, sugere a especialista. 

Outro desafio relatado por Guilherme é a plataformização da educação. “Na rede pública de São Paulo, o estado cobra o uso de várias plataformas de tecnologia, com atividades e provas externas para manter o aluno aprendendo digitalmente”, pontua. O principal problema, segundo ele, é a cobrança das secretarias de ensino pelo resultado, quando, muitas vezes, o estudante não tem computador, celular ou internet em casa para realizar a tarefa.

“A escola tem uma sala de informática com 27 chromebooks funcionando. Mas as minhas turmas, por exemplo, têm 40 alunos cada”, afirma. O professor reforça que é notável a diferença do uso da tecnologia em sala. “A gamificação é uma metodologia incrível. O que falta é suporte”. 

De acordo com Andréa, a educação tem vivido uma “pandemia de plataformas”, com o mercado produzindo desenfreadamente e pressionando o sistema de ensino para adquiri-las. “A gente teve uma emergência [durante o isolamento social por causa da Covid-19] e precisou integrar as plataformas [à rotina] rapidamente. Mas precisamos dar um passo atrás e perguntar ao professor o que ele realmente está precisando [e não apenas nesse contexto]”, conclui.

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FONTE: https://novaescola.org.br/conteudo/21762/historias-de-quem-vive-a-profissao-sem-superpoderes?

Por Carol Firmino, 16/10/2023

Edição: A. R.

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