A necessidade de nos inquietarmos é cada vez maior.
A superficialidade torna-nos máquinas e não conseguimos enxergar
o que está ali, à nossa frente.

 

Temos um vizinho novo. Trata-se de um rapaz alto e saudável, que chega ao final da tarde e sai bem cedinho. Presumo que seja um trabalhador como qualquer outro, todavia, sua morada é inusitada por estar em um terreno baldio onde existe um telhado e, embaixo dele, algumas caixas de papelão. É ali que o vizinho dorme e onde guarda suas coisas. Sua condição de vida e invisibilidade lembram-me de outro caso bem emblemático.

Uma professora de filosofia conta sobre uma aula frequentada por adolescentes em uma escola pública. Os estudantes foram chegando e fizeram companhia a um grupo uniformizado fazendo limpeza na sala. Alguns minutos depois, a ausência da professora foi sentida e as reclamações pelo atraso foram inevitáveis.

Em meio à estranheza pelo atraso alguém falou: “O que é filosofia?” Os alunos perceberam então que a professora integrava o grupo uniformizado. O episódio resultou em uma aula inusitada, cheia de significado, pois perceberam a condição de invisibilidade do grupo que limpava.

Os alunos entenderam, após uma conversa, que a filosofia propõe-se a ver o mundo à nossa volta, com atenção, com senso crítico e com o intuito de compreender as raízes da experiência humana.

Duvido que alguém tenha saído daquela sala sem ter sido profundamente afetado. Certamente aquela meninada tinha a impressão de que a filosofia fosse algo abstrato, fruto de conceitos que, através da história da filosofia diferentes pensadores elaboraram para entender os valores, a natureza, a beleza, o homem, cada um à sua maneira.

Entenderam que esses filósofos tinham a característica de questionar o mundo considerando as teias das nossas relações cada vez mais complexas.  A necessidade de nos inquietarmos é cada vez maior, por isso ampliaram os questionamentos chegando a mais significados. Os alunos compreenderam a invisibilidade como uma questão forte que precisa ser visitada.

“O trabalho do filosofar não se faz sem o trabalho de adentrar o pensamento de alguns filósofos. Essa entrada é uma armadilha. Entramos no pensamento de filósofos consagrados, mas então percebemos que só podemos assim realmente fazer se deixarmos as coisas se inverterem: é o filósofo que adentra em nós e nos utiliza para voltar a pensar. Perdemos nossa identidade nisso”. (Filósofo Paulo Ghiraldelli)

Crenças do estudante de filosofia

A experiência humana mostra-nos seres que passam por nós sem que sejam vistos. As ciências fundamentam o conhecimento, mas os comportamentos fogem da abrangência delas. Há que manter um afastamento do real, para que enxerguemos o que o pensamento radical nos proporciona.

A superficialidade torna-nos máquinas e não conseguimos enxergar o que está ali, à nossa frente.

Não precisamos estar de uniforme para que sejamos invisíveis. Tantas vezes ignoramos pessoas em função do que a tecnologia permite, fazendo-nos indiferentes ao lugar onde estamos e às pessoas que nos rodeiam. O aparelho celular tornou-se um companheiro inseparável em todos os lugares em detrimento do convívio humano. Preferimos olhar paisagens armazenadas no celular, ao invés de apreciá-las enquanto passamos.

O mundo real passa a ser invisível. Pessoas reais são ignoradas, enquanto vivemos nossas vidas em ritmo alucinante, sem que consigamos ver a verdadeira beleza. Observar o mundo de verdade torna-nos sensíveis e aptos ao aprimoramento da condição humana.

Meu vizinho novo continua lá, invisível em seu modo de vida. Imagino as privações por que passa, imagino a solidão que a noite lhe traz, avalio o frio percorrendo seu corpo e os insetos corrompendo sua pele. Sinto-me cada vez mais impotente diante das desigualdades. A pobreza extrema é uma excrescência imperdoável e a indiferença nos avilta enquanto cidadãos.

Considero a filosofia indispensável. Considero o alhar atento cada vez mais necessário. Enquanto nos inquietamos, o Estado nos brinda com planos elaborados dentro de gabinetes por pessoas dissociadas da realidade.

Essas pessoas dos governos deveriam andar de ônibus, ter seus filhos em escolas públicas e seus sapatos sujos de tanto frequentar os guetos onde pessoas invisíveis amargam a falta de tudo o que traz conforto, saneamento, moradia digna, comida suficiente.

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