Mulher negra da América Latina: uma luta por um lugar na aquarela da branquitude

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A mulher negra precisa de mais políticas públicas
para alcançar os seus sonhos.
Tornar-se reconhecida pelos seus méritos.
Poder usar o seu cabelo do jeito que quiser,
poder vestir-se do jeito que achar melhor
e poder exercer a religião que desejar.


A mulher negra da América Latina é submissa a mulher branca e ao patriarcado ornamentado por um poder de impor regras e condições ao exercício de ser mulher. Geralmente, prefere o batom da mulher branca porque a mulher branca faz propaganda com aquele batom e fica mais bonita com ele.

Para chegar a algum lugar, ela precisa aprender a falar como uma mulher branca, vestir-se como uma mulher branca e pintar a sua alma de branca. Onde quer que vá ela terá sempre a sua frente os costumes e culturas da mulher branca prontos para oprimi-la e descaracterizá-la frente aos seus anseios e vontades.

Essa opressão ocorre nos mais diversos âmbitos da sociedade o que traz uma negação da mulher negra a si própria aceitando o que vem de fora, o que a aflige e, principalmente, o que a submete aos mais diversos desfloresceres da sua alma.

Atualmente, temos visto um movimento dessas mulheres negras no combate a submissão aos costumes da mulher branca, mas ainda é tímido e pouco aceito pela sociedade preconceituosa que ajuda a oprimir cada vez mais essas mulheres seja negando-lhes o direito de buscar o reconhecimento como profissionais valorizadas no mercado de trabalho ou seja como inferiorizando a mulher que vem da favela à procura de novos conhecimentos acadêmicos para instruir-se e conhecer os seus direitos.

Mulher negra não pode ser juíza, advogada, médica, modelo ou até mesmo professora de escola privada. Ela será sempre a negrinha da cozinha como nos tempos das senzalas e dos casarões dos ricos fazendeiros.

O que buscamos nesse ensaio é mostrar que a mulher negra da América Latina tem buscado superar essa opressão apesar da luta ainda ser por demais grande e não ser reconhecida nas esferas político-econômica-sociais dos seus países. Vou deter-me ao Brasil. E mais precisamente ao caso da mulher negra que ficou conhecida no mundo inteiro após o seu frio assassinato, a nossa querida Mariele Franco. Mulher negra, da favela, socióloga que estudou e tornou-se pelo voto popular uma das vereadoras mais votadas do estado do Rio de Janeiro.

A vereadora Mariele Franco tinha um trabalho bonito na sua comunidade e lutava para acabar com a opressão da polícia militar em relação aos pobres e negros das favelas cariocas. Não se sabe o motivo da sua morte. Mas, podemos afirmar que ela era uma mulher negra que incomodava muitas instâncias da sociedade brasileira. Por ser negra não devia estar entre os vereadores de maioria brancos e ricos.

Ela lutava por uma população subalterna à cultura dos brancos que não pode fazer uma festa na laje, ouvir um rap ou sonhar com uma vaga numa universidade pública. Mariele lutava principalmente pelas famílias que tinham seus filhos mortos pela polícia militar nas favelas cariocas. A sua favela, a da Maré, é uma das mais oprimidas do país. O seu trabalho deveras mexia com os costumes dos brancos que nunca precisaram dá explicações do que fazem ou deixam de fazer a um negro, e mais ainda, a uma mulher negra.

Segundo Böschemeier a branquitude impõe a sua voz como um privilégio diante do que afirmamos acima onde a mulher negra silencia-se diante da branca por sentir-se inferior

Assim, estou salientando o fato de que não existe branquitude em si mesma, mas sim há a manifestação social do que é entendido como “ser branco” e que se expressa nas dimensões étnico-raciais — não se restringindo ao aspecto fenotípico — , marcando o lugar ao qual pertencem os privilégios do ser, do dizer, do ocupar, do existir em um mundo que é estruturalmente racista e colonial.[1]

Essa fala do “sou branca” cai numa dimensão preconceituosa e arbitrária diante da mulher negra impondo-lhe obediência e servidão no que diz respeito aos costumes e culturas da sua sociedade. Coloca a mulher negra numa posição de desconforto e submete-a as mais desoladoras ofensas desrespeitando a sua dignidade enquanto cidadã e mulher. Traz uma branquitude opressora e desarrazoada em relação às diferenças que se colocam diante da mulher negra.

Quando do assassinato da vereadora Mariele Franco, muitas pessoas choraram, no entanto a maioria da sociedade brasileira sorriu e debochou do pranto de quem chorava por aquela mulher negra que tanto incomodava, a maior parte das pessoas que fizeram comentários ofensivos nas redes sociais sobre Mariele Franco; esses são homens e mulheres brancas que se sentiam incomodados com os seus projetos sociais voltados para os negros das favelas.

Assim como Mariele conseguiu uma formação acadêmica e o reconhecimento de parte da sociedade carioca que nela votou para vereadora, muitas mulheres negras lutam para alcançar o sonho simples de aprender a ler e a escrever. A maior taxa de analfabetos brasileiros encontra-se na população negra e moradora de favelas.

As jovens negras das favelas brasileiras não têm o direito resguardado de serem princesas num mundo onde essas devem ter olhos azuis, pele branca e cabelos louros. É um sonho que se sonha só, logo não será realizado.

Nas profundezas da caverna, encontramos uma luz no fim do túnel com mulheres como Conceição Evaristo que vêm se destacando num mercado elitizado que é o da literatura. Explicar o motivo por que Conceição Evaristo não foi aceita ano passado na Academia de Letras Brasileira é um mistério, não temos o que dizer. Todos sabem que a sua escrita simboliza a luta da mulher negra no mundo inteiro e independente de ser negra ou não escreve maravilhosamente bem, como indicam as vendas dos seus livros.

Também vemos com muito esforço e pouca divulgação algumas fábricas que produzem bonecas negras para crianças brancas. Bonecas essas que dificilmente serão o brinquedo de uma criança branca que desde cedo aprende a ignorar e menosprezar a criança negra que se senta ao seu lado na escola.

A mulher negra da favela só se torna uma princesa quando é descoberta por algum empresário do mercado da moda que trata de levá-la imediatamente para fora do país e submete-a aos mais diversos costumes europeus para adaptar-se à passarela da moda como as demais modelos brancas. Essa mulher passa a andar, vestir-se e falar como se fosse uma mulher branca. A cor da sua pele é o que chama a atenção na passarela, ela não é bonita pelas suas qualidades, mas pela cor da pele que raramente se destaca no mercado da moda. A cor da sua pele é que diz o valor do contrato. Raras são as modelos negras brasileiras. A mais famosa modelo brasileira é uma branca de olhos azuis que todos nós a conhecemos.

Apesar de sermos um país constituído na sua maior parte de mulheres negras, são as mulheres brancas que alcançam os maiores salários nas passarelas europeias. Diferente do que acontece no relato de Böschemeier, que diz ser bem tratada na universidade onde leciona, apesar de considerar-se uma branca mestiça de origem rural

A branquitude está ali, é lida no meu fenótipo e na minha maneira de usar o corpo, me permitindo falar com mais legitimidade, me alimentando de cortesias, gentilezas e amabilidades que não existem para todo mundo. Me permitindo circular em diversos âmbitos não importando tanto as roupas que eu vista, sem ser questionada — ou sendo infinitamente menos questionada — na maior parte dos territórios sociais que marcam esta sociedade desta América Latina racista e colonial. Devo dizer que ser uma mulher latino-americana nesse mundo não é pertencer a um lugar fácil — e é na luta por essa dignidade que eu me reconheço.[2]

Na verdade, o que relata Böschemeier é uma exceção à parte num local onde a maioria das mulheres brancas são aprovadas e vão estudar. Porém, ela ressalta que esse jeito cortês das mulheres brancas se dirigirem a ela não é dedicado a todo mundo. Apesar de sentir-se bem recebida na sua universidade, a autora ratifica o quanto é difícil ser uma mulher latino-americana, ou seja, a maioria dessas mulheres são negras ou pardas. Logo passam por constrangimentos e situações de opressão e submissão das suas vontades, desejos e pensamentos.

O que pode querer uma mulher negra moradora de uma favela além de ser dona de casa ou empregada doméstica? Muitos quereres carregam essa mulher. Alguns nunca serão conquistados e outros quem sabe com muita luta possam ser alcançados com a sua coragem e força de vontade. Falei acima do exemplo de Mariele Franco, mas agora detenho-me a falar de uma mulher negra anônima na sociedade norte-rio-grandense que veio das favelas cariocas para a cidade do Natal e casou-se com uma mulher branca.

Durante muitos anos da sua vida, foi submetida aos costumes e cultura da sua mulher, as suas vontades e quereres. Nunca buscou seus sonhos que eram muitos porque achava que ser casada com uma mulher branca já era muita coisa para ela. Essa mulher negra sempre gostou de fazer continhas. De repente, ela cismou de cursar matemática numa universidade pública e estudou para conquistar uma vaga. Foi aprovada em primeiro lugar no curso de matemática e alegre foi para a sala de aula. No seu segundo dia de aula, fez uma pergunta ao professor branco e de olhos azuis que a olhou de cima abaixo e disse-lhe mais ou menos o seguinte: matemática não foi feita para mulheres, muito menos para negras. Sem saber o que dizer essa mulher a quem procuro chamá-la de X silenciou-se diante da opressão do seu professor. Mas não desistiu do seu curso.

Seguiu em frente, formou-se e foi a laureada da turma. Achou pouco? Achou! Resolveu cursar direito e também foi aprovada na universidade pública. Vale salientar que na época do seu processo não havia cotas para negros. Ela enfrentou ampla concorrência. No curso de direito a mulher negra X se viu sozinha em meio aos seus colegas de classe ricos e brancos. Não se rendeu a opressão da sua turma. Estudou muito e finalizou seu curso. Hoje essa mulher X é uma brilhante advogada, tem a sua bela casa e vive bem num dos melhores bairros da nossa capital. Ela podia ter se deixado submeter-se as dificuldades que a vida lhe impôs, mas foi à luta e chegou onde queria. Sabemos que essa é uma história muito rara, porque poucas mulheres negras têm a mesma coragem e oportunidades da mulher X. Assim como poucas mulheres negras teriam a coragem de Mariele Franco. Muitas preferem a vidinha sem sonhos vista pela janela do metrô cheio cansadas de um dia de trabalho na casa dos patrões brancos.

A mulher negra precisa de mais políticas públicas para alcançar os seus sonhos. Tornar-se reconhecida pelos seus méritos.

Poder usar o seu cabelo do jeito que quiser, poder vestir-se do jeito que achar melhor e poder exercer a religião que desejar. Para isso, faz-se necessário um grande esforço por parte de cada uma de nós, mulheres negras, que somos vítimas dos mais atrozes preconceitos da sociedade branca. É possível que existam outras Marieles nas favelas do nosso país esperando uma oportunidade de dá o seu grito de luta e negação da opressão.

É possível que existam outras Conceição Evaristo que escrevem bem e podem sim conquistar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. É possível que existam outras mulheres iguais a mulher X que citei como exemplo mais próximo de mim e possam realizar os seus sonhos de chegarem a uma universidade pública.

As portas estão se abrindo aos poucos, conquista de parte das mulheres negras que rebelaram-se contra essa sociedade machista e opressora que só visa o melhor para si própria.

Essa cultura opressora do branco em relação ao negro tem sido estudada mais intensamente nos dias atuais e agora a desconstruímos com a expressão “decolonial”, em que o eurocentrismo perde seu espaço. A decolonização visa à superação das verdades trazidas pelo eurocentrismo e atribui ao negro uma causa maior de expressões e valores humanos, respeitando a cultura dele. O “decolonial” dá ao negro um espaço nunca antes visto, possível de rebelar-se diante de toda a opressão que lhe é atribuída.

A mulher negra, como já foi dito acima, aos poucos vai buscando o seu lugar no mundo. É uma batalha difícil, mas que nunca deve ser deixada para trás. Os obstáculos são enormes. Vencer a superioridade da cultura da mulher europeia branca é um desafio. Devemos começar impondo a história dos nossos antepassados e mostrando que somos mulheres de lutas e corajosas.

O pensamento decolonial amplia a voz da mulher negra na esfera sociocultural onde ela pode expressar os seus sentimentos e vontades sem medo de ser oprimida. Achamos mais uma luz dentro da caverna. É um pensamento que atribui a mulher negra condições de ratificar a sua cultura e costumes dentro de uma sociedade branca que não a enxerga como parte da sua história.

Entendemos também o patriarcado como figura presente nas famílias dessas mulheres brancas que impõem padrões de respeito apenas às pessoas da sua sociedade e da mesma posição social em que se encontram.

O patriarcado demarca o preconceito machista em relação a obediência das mulheres às suas necessidades, promovendo através da sua branquitude a separação étnico-racial das mulheres brancas das negras. São condutas comportamentais que devem ser excluídas do nosso pensamento e da nossa sociedade uma vez que o machismo está perdendo forças diante da nossa luta. A hegemonia que esse patriarcado efetiva objetivando o seu poder frente a dominação mundial faz o ser mulher um território a ser explorado, conforme

Precisamos nos explicar por que tanta violência contra nossos corpos, para saber que não é porque somos morenas, ou por causa das formas e tamanho de nossos corpos, ou pelo idioma que falamos, ou pelos costumes e

culturas que temos. Não somos burros desde o nascimento, não somos sujos, não somos feios. O que aconteceu é que foi imposto um sistema hegemônico que reforçou a discriminação e opressão contra nós, violência que até recebemos de nossos próprios irmãos indígenas. Para nós, a categoria junção patriarcal deixa clara as combinações, alianças, cumplicidades entre homens invasores colonizadores e indígenas originários de nossos povos. Uma articulação desigual entre os homens, mas articulação cúmplice contra as mulheres, que conspiram nova realidade patriarcal que é a que vivemos até hoje. Com dor entendemos que nossos avós traiu nossas avós e até hoje nossos jilatas ou os irmãos também se tornam cúmplices no patriarcado e traem nossas lutas como comunidades e como povos, dos quais as mulheres são metade. (Tradução livre)[3]

Parece que a mulher e mais precisamente a mulher negra não deve sair da sua morada para alcançar novos caminhos segundo a visão que se encontra no patriarcado que a veste com uma roupagem suja e feia aos olhos da sociedade branca. A branquitude dita as vestes da mulher negra sejam elas as do pensar enquanto reflexo de movimentos e revoluções que buscam o reconhecimento da cor da sua pele e do seu pensamento.

O patriarcado acaba desconstruindo a mulher no que ela tem de mais bonito que é o seu corpo, para deixá-la vestida até os pés e sem o direito de expor as suas ideias e contrapontos diante de um machismo que só verbera preconceito e negligência no que diz respeito ao reconhecimento do lugar da mulher, sim, da mulher negra mais precisamente.

Pintemos a América Latina com a nossa negritude, afinal, na noite o brilho das estrelas torna-se mais belo. Sejamos estrelas para um mundo sem opressão. Sejamos uma aquarela à janela da policromia.



Bibliografia

ECHAZÚ, Ana Gretel. “Nesse Feminismo [Branco] Não Nos Reconhecemos”: As Mulheres Indígenas do Arco Íris — Bolívia respondem à antropóloga Rita Segato.

PAREDES, Julieta. El feminismocomunitario: la creación de un pensamiento próprio:  Community feminism: the creation of one’s own thinking. Corpus Archivos virtuales de la alteridad americana. Vol. 7, No 1 | 2017, Enero / Junio 2017.



Mulher negra nordestina catadora de caranguejos

Mulher negra tristonha

A menina dos fósforos negra
Inspirada no conto de fadas de Hans Christian Andersen



[1] ECHAZÚ, Ana Gretel. “Nesse Feminismo [Branco] Não Nos Reconhecemos”: As Mulheres Indígenas do Arco Íris — Bolívia respondem à antropóloga Rita Segato, pág. 01.

[2] ECHAZÚ, Ana Gretel. “Nesse Feminismo [Branco] Não Nos Reconhecemos”: As Mulheres Indígenas do Arco Íris — Bolívia respondem à antropóloga Rita Segato, pág. 08.

[3] PAREDES, Julieta. El feminismocomunitario: la creación de un pensamiento próprio:  Community feminism: the creation of one’s own thinking. Corpus Archivos virtuales de la alteridad americana. Vol. 7, No 1 | 2017, Enero / Junio 2017, pág. 07.

1 COMENTÁRIO

  1. Ensaio maravilhoso e oportuno, principalmente nesse momento de opressão, no qual insistem em destruir os direitos dos menos favorecidos. Mais politicas públicas para deter essa onda de intolerância e abrir mais portas para as mulheres negras. Por mais Marielles.

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