Não tenho palavras para agradecer a comenda e a acolhida que sempre tive aqui na Academia Passo-Fundense de Letras. Estou feliz por estar entre bons amigos.
Como sou contador de histórias, devo me apresentar contando uma.
Eu sofria a influência dos textos de Jorge Luís Borges. Em “Evaristo Carriego”, ele escrevera que ser pobre implica posse mais imediata da realidade: “Um choque com o primeiro gosto áspero das coisas”. Quem não é pobre não tem esse conhecimento, “como se tudo lhes chegasse filtrado”.
Realizava uma pesquisa na vila Maria da Conceição (Maria Degolada) em Porto Alegre, sobre gravidez indesejada com a orientação do Professor Aristides Cordioli. Dei-me ao trabalho de passar de casa em casa e encontrei trinta mulheres grávidas. Por sinal, 76,6% dessas gestantes não desejavam ter engravidado. Nessa imersão na vila, achei adequado conhecer mais profundamente a vida de quem lá morava: “o gosto áspero das coisas”. Sem filtros. Visitei terreiros e um bar, no qual só fui duas vezes, ambas no final da tarde.
Na primeira vez, sentei-me em uma mesa próxima da porta, talvez por receio. Começou a chover e a ventar e a porta foi fechada. Os poucos frequentadores estranharam quando pedi um guaraná. Logo voltaram às suas conversas e me ignoraram, a não ser no momento em que um homem vindo da chuva abriu a porta com tamanha força que ela foi de encontro ao meu braço direito e me fez derrubar meu copo, que se quebrou. Aquele que me parecia o dono do estabelecimento exigiu do novo frequentador o pagamento do copo quebrado.
Gerou-se uma certa polêmica, o culpado bem podia ser aquele que não soube segurar o copo com firmeza. Adiantei-me, afirmando que eu pagaria o guaraná e o copo. E assim o fiz.
Deixei o bar e mergulhei na chuva e no vento. Estava frustrado. Talvez imaginasse, como Borges nos bares da periferia de Buenos Aires, ser testemunha de ocorrências pesadas. Ninguém pegou o vidro quebrado e usou-o como arma, não vi, como nos contos de Borges, nenhuma luta de punhal contra punhal. Não fui ameaçado nem nada. Pior, fui ignorado.
Passados alguns dias, retornei ao bar. As poucas mesas estavam ocupadas, em apenas uma havia um só frequentador, o qual me chamou. Sentei-me e ele disse que era morador da vila, funcionário do Hospital Psiquiátrico São Pedro, e que sabia que eu trabalhava lá como médico.
Não cheguei a pedir nada para beber, pois segui de imediato seu conselho: uma coisa era um médico entrar na casa deles para “interrogar” suas mulheres, outra coisa era um cara que eles encontravam no bar fazer isso: “Não vão gostar, e aí…”. Quando me disse os anos em que morava na vila, acreditei: agradeci, levantei e fui embora.
Já estava quase concluindo minha pesquisa quando, ao passar pela frente do bar, ouvi de um homem que estava na porta: “E aí, doutor?! Não vai chegar? Pago um liso e você me diz o que a minha mulher contou!”.
Como jamais eu iria contar e como sua sobrancelha escura parecia pintada com tinta, acelerei o passo, quase corri.
Tempos depois, li de Borges: “Fermín… Fermín nunca me perdoou por ter sido testemunha de sua frouxidão”.
Da minha frouxidão não houve testemunha e eu a escondi dos colegas e amigos da época. Não queria ao encontrá-los ouvir algo do tipo “aí vem o pesquisador cagalhão”.
O fato é que na minha vida sempre estive na companhia de bons escritores. Eles sempre me ajudaram a aliviar e não a me causar medos. Pensando bem… nem sempre.
Em um dos primeiros livros que tentei ler na infância, havia um conto com o título: “Um longo grito irrompe do túmulo”. A história me fascinava, começava a ler e, tomado por medo, não conseguia ir até o fim. Mas gostava demais de recomeçar mesmo sabendo que nunca conseguiria ir até o fim. De fato, nunca consegui.
Depois, não mais encontrei esse texto.
Se alguém dos presentes tem consigo “Um longo grito irrompe do túmulo”, não me empreste. Não vai adiantar me emprestar… eu não vou conseguir ler até o fim.
Mas é fato que na minha vida sempre estive na companhia de bons escritores. Vou relatar uma passagem dela e junto com ela vem… no caso presente… Jorge Luis Borges.
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Com certeza, de agora em diante terei também a companhia de SANTE UBERTO BARBIERI.
Vai se somar a boa companhia que tenho de meus amigos da Academia. Aos quais quero agradecer por esta exagerada homenagem. Homenagem memorosa, inolvidável e forte.
Meu muito, muitíssimo obrigado. E um… um abração!
Na última sexta-feira, 4 de abril, a Academia Passo-Fundense de Letras realizou a Sessão Solene de Abertura do Ano Acadêmico de 2025, marcando também a comemoração do seu 87º aniversário. O evento, realizado na sede da instituição, reuniu acadêmicos, autoridades, convidados e membros da comunidade em uma noite repleta de emoção, cultura e reconhecimento.
A solenidade teve como destaque a outorga do “Mérito Cultural Sante Uberto Barbieri” ao psiquiatra, escritor e cineasta Dr. Jorge Alberto Salton, em reconhecimento à sua relevante contribuição à cultura local. Também foi concedida a primeira “Medalha de Excelência Acadêmica Delma Rosendo Gehm” ao professor e pesquisador Agostinho Both, por sua trajetória acadêmica e dedicação aos projetos da APLetras.
Fotos: APL (Academia Passo-Fundense de Letras)
Autor: Jorge Alberto Salton. Escreveu “Doutor, como estão os loucos hoje”?: www.neipies.com/doutor-como-estao-os-loucos-hoje/
Edição: A. R.