Não existe sereia negra?

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Nossas raízes mais profundas estão na África. Não faz o menor sentido ignorar a sua história.

 “Onde já se viu uma Ariel negra?”, questionou alguém incomodado com o fato de uma atriz negra ter sido escalada para interpretar uma das mais populares princesas da Disney no filme “A Pequena Sereia.” “Ariel é ruiva”, afirmou convictamente. “Não existe sereia negra”, protestou. Então, proponho que da próxima vez escalem uma sereia de verdade.

Desde o dia em que os estúdios anunciaram que a atriz negra Halle Bailey seria a nova Ariel, a produção recebeu vários ataques racistas.

Não foi diferente agora com o lançamento do primeiro trailer. Na manhã do dia 12 de setembro, o vídeo já tinha nove milhões e meio de visualizações, 344 mil likes e, pasmem, 1 milhão e duzentos mil dislikes.

Mas é melhor que os racistas de plantão comecem a se acostumar. Ações afirmativas são cada vez mais frequentes em produções cinematográficas. Muitas outras produções têm substituído atores brancos por negros, não só para interpretarem personagens fictícios como Doctor Who, por exemplo, mas também personagens históricos tidos como brancos.

O irônico é que a mudança racial só incomoda quando escurece, mas quando branqueia, ninguém se queixa, como aconteceu com figuras históricas como Jesus, Cleópatra e Machado de Assis.

Filmes, novelas e séries têm um grande poder na construção de valores sociais, e boa parte desta construção passe pela representatividade. Quem geralmente discorda disso é quem sempre se viu representado e não imagina como é não se ver em nada que consome.

Esse apego exagerado ao fenótipo de personagens fictícios não passa de racismo enrustido.

A reação de crianças vendo pela primeira vez Halle Bailey dando vida à Ariel foi fascinante e viralizou nas redes sociais. Ao ver o tom de pele da personagem, meninas negras se sentiram representadas.

Reação semelhante ocorreu com o anúncio do novo “Doctor Who.” Depois de 39 temporadas e quase 60 anos no ar, finalmente um ator negro interpretará o personagem principal em uma das mais tradicionais séries da TV britânica. Enquanto alguns celebram, outros se mostram incomodados com a escolha de Ncuti Gatwa, para herdar o manto do Doutor.

O ator, que além de negro, também é gay, nasceu em Ruanda em 1992 e com dois anos mudou-se com sua família para a Escócia fugindo de um massacre em massa que ocorreu durante a Guerra Civil em seu país. Formado em arte cênicas em 2013, ganhou fama mundial em 2018, ao interpretar Eric, um jovem gay descobrindo sua sexualidade e identidade em uma família religiosa nigeriana, na série “Sex Education” (Netflix).

Outra série que deu muito o que falar foi Bridgerton. Ambientada em Londres no período regencial, tem em seu elenco atores de diversos matizes étnicos interpretando membros da aristocracia inglesa. O protagonista da primeira temporada da série é um ator negro.

Recentemente, o alvo das críticas ao elenco multiétnico foi “Anéis de Poder”, série inspirada em “O Senhor dos Anéis” de Tolkien. Para alguns, é admissível ver um elfo interpretado por um ator que não seja branco.

Apoio qualquer ação afirmativa que vise a reparação do prejuízo sofrido por populações minoritárias ao longo do tempo. Porém, acredito que outros passos precisam ser dados além de introduzir atores e atrizes de minorias étnicas ou homossexuais em elencos predominantemente brancos e héteros.

Melhor do que uma “Branca de Neve” ou uma “Rapunzel” negra seria criar princesas que fossem negras desde o início. Melhor do que uma releitura histórica em que personalidades notadamente brancas sejam interpretadas por atores negros seria contar a história de personalidades negras em seus contextos originais. Algo como foi feito no filme “A Mulher Rei” estrelado por Viola Davis.

O filme tem como protagonista Nanisca que foi uma comandante do exército do Reino de Daomé, um dos locais mais poderosos da África nos séculos XVII e XIX. Durante o período, o grupo militar era composto apenas por mulheres que combateram os colonizadores franceses, tribos rivais e todos aqueles que tentaram escravizar seu povo e destruir suas terras.

Conhecidas como as Amazonas Dahomey, ou Agojie o grupo foi criado por conta de sua população masculina enfrentar altas baixas na violência e guerra cada vez mais frequentes com os estados vizinhos da África Ocidental, o que levou Dahomey a ser forçado a dar anualmente escravos do sexo masculino, particularmente ao Império Oyo, que usou isso para troca de mercadorias como parte do crescente fenômeno do comércio de escravos na África Ocidental durante a Era dos Descobrimentos, o que fez com que mulheres fosse alistadas para o combate.

Hollywood está em polvorosa! O eurocentrismo está cedendo a uma leitura mais pluralista da história, levando em conta a existência e a rica história de outros povos como os que habitaram a África antes que fossem explorados, saqueados e escravizados por nações europeias.

Nossas raízes mais profundas estão na África. Não faz o menor sentido ignorar a sua história.

À medida que nos afastamos do paraíso, símbolo da integração com o Criador e com o restante da criação, empalidecemo-nos. O frio das longínquas terras para as quais migramos nos clareou a epiderme, mas também resfriou nossa alma. Nossos cabelos ficaram escorridos, pois não precisavam mais reter a água que refrigerava nossas têmporas durante os dias de sol escaldante das regiões áridas do velho continente.

Perdemos o tônus muscular quando deixamos de correr pelas savanas para escapar das feras. Passamos a nos refugiar em cavernas para nos proteger do frio. O fogo agora não nos servia apenas para assar nossa comida, mas também para aquecer nossas noites e preservar a rica herança negra que carregávamos na alma. Os tambores jamais deixaram de rufar. Mesmo sem entender direito o que efeito que causavam na constituição de nosso ser, deixávamos que seu som nos seduzisse e nos pusesse a dançar. Cada canto, cada passo de dança, cada ritual, era um tributo que prestávamos às nossas raízes.

Se nossa mente é grega, nossa fé é judaica, nossas leis são romanas, nossa moral é vitoriana, nossa alma é africana. Se a Mesopotâmia é o nosso berço, a África é o útero no qual fomos formados. Não há como negar!

A melanina que nos falta à pele pigmenta nossa alma. Não é possível disfarçar por muito tempo nossa latente negritude, pois ela ainda vibra ao som dos tambores, se delicia pelo encanto dos sabores e se inspira nos ideais de heróis como Luther King e Mandela.

Nem mesmo a escravidão foi capaz de sufocar o espírito aguerrido que nos habita. Como a fênix, a África renasce das cinzas através de sua arte, para brindar a civilização com sua desaforada musicalidade.

Somos todos filhos da África. Mas numa espécie de Édipo planetário, ensejamos matá-la e nos apoderar de tudo o que ela produz. Queremos sua arte, sua jinga, sua fé, sua fibra, mas rejeitamos sua gente. Cobiçamos as curvas de seus corpos, mas desprezamos os traços de seus rostos. Invejamos sua virilidade, ambicionamos sua força e destreza, mas rejeitamos sua companhia.

Nosso preconceito nos entrega. Revela nossa face mais cruel e indigna. Expõe nossas vísceras fétidas, carregadas de excremento racista.

Fizemos a eles o que Dalila e os filisteus fizeram a Sansão. Vazamos seus olhos quando lhes oferecemos uma educação tacanha, incapaz de fazê-los enxergar criticamente o arranjo social no qual são inseridos. Tosquiamos seus cabelos ao convencê-los de sua suposta fraqueza e inferioridade. Pusemo-los a trabalhar em nossos moinhos, tornando-os meras engrenagens de nosso sistema, lubrificado pelo seu sagrado suor. E por fim, cedemos-lhes (não sem resistência) a ribalta, proporcionando-lhes a ilusão de serem o centro das atenções enquanto nos divertimos à sua custa.

Iludidos são os que pensam que não haverá uma reação. Tal qual o herói hebreu, abraçaram os pilares de nossa cultura, mas em vez de derrubá-los, passaram, na verdade, a escorá-los.

Se quisessem, derrubariam nosso templo, e nos soterrariam sob os escombros de nossa vaidade. Mas surpreendentemente, preferem nos poupar, abençoando-nos com sua presença no mundo, ensinando-nos a resiliência capaz de sorrir e festejar mesmo em face da dor.

Para riscar a África do mapa, teríamos que rasgar os poemas de Machado de Assis, esquecer os solos psicodélicos de Jimmi Hendrix, a voz rouca de Ray Charles, o balanço de Tim Maia e Jorge Benjor, a genialidade esportiva de Pelé e Tiger Woods, os passos de Michael Jackson, o caráter de Joaquim Barbosa, a envergadura ética de Desmond Tutu, o carisma de Barack Obama, o idealismo de Nina Simone e Bob Marley, o empoderamento de Beyoncé, a extensão vocal de Whitney Houston, o humor de Eddie Murphy, o engajamento de Oprah Winfrey, o brilhantismo da atuação de Sidney Poitier, Denzel Washington, Will Smith, Milton Gonçalves, Lázaro Ramos e o inesquecível Grande Otelo, o talento musical de Cartola, Milton Nascimento, Djavan, Alcione, Emicida e tantos outros.

Definitivamente, o mundo não seria o mesmo sem esses ilustres filhos da África.

07 coisas que você precisa saber sobre a África. Assista: https://youtu.be/xx0E5i32uJQ?t=8

Autor: Hermes C. Fernandes

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