Não queira ser o que não é

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Ninguém é descartável por ser o que se é. Permitamos que o outro se torne aos nossos olhos como aquele que nos dê prazer. Talvez isso dependa mais de nós mesmos do que dele.

Em meio a declarações românticas recíprocas entre um rei e uma camponesa, surge a inusitada digressão abaixo:

“Temos uma irmã pequena, que ainda não tem seios. O que faremos a essa nossa irmã no dia em que for pedida em casamento? Se ela for um muro, edificaremos sobre ela um palácio de prata. Se ela for uma porta, nós a cercaremos com tábuas de cedro. Eu sou um muro, e os meus seios como as suas torres. Assim tornei-me aos olhos dele como aquela que traz prazer.”

No afã de explicar no que ela mesma havia se tornado, Sulamita recorre à figura de sua irmãzinha. Ninguém é o que é sem que tenha passado por vários estágios. Sulamita percebe em sua pequena irmã potencialidades que havia em si mesma. Porém, tais potencialidades não são sentenças. Ela não poderia esperar que sua irmã a recapitulasse, tornando-se uma mera cópia de si.

O fato de ainda não ter seios significa que ela estava em processo de maturação. Não ter seios hoje não significa que não os terá amanhã. O nome disso é latência. Eles já existem em potencial. Só faltam aflorar, vir à tona. O que hoje é latente, amanhã será patente. Os seios representam o aparato fornecido pela natureza para que a mulher cumprisse o propósito de sua existência, que para as sociedades antigas limitava-se à maternidade. Ela ainda não tem seios, mas um dia os terá. Daí surge a questão: Que faremos no dia em que for pedida em casamento?

Cada estágio da existência humana apresenta suas próprias demandas. Uma criança requer atenção especial, cuidados essenciais. Um pré-adolescente requer disciplina, acompanhamento, instrução. Porém, não se pode perder de vista as demandas que o futuro trará. Quem hoje nem sequer tem seios, amanhã será pedida em casamento. Quem hoje nem sequer tem pelugem na face, amanhã estará pedindo a mão de sua filha em casamento. O pequeno empreendedor de hoje, poderá se tornar no empresário de vulto amanhã. E quando isso ocorrer, as demandas serão outras. Aquele garoto rebelde traz consigo potencialidades que o tornarão um chefe de família responsável e exemplar.

Até que ponto estamos preparados para as demandas futuras? Como reagiremos quando estas se apresentarem? O que requererão de nós? A vida se apresenta imprevisível. Mesmo que não haja tantos cenários possíveis, nossas respostas se incumbirão de estabelecer os rumos que ela seguirá.

Sulamita nos apresenta dois cenários. Sua irmã poderia revelar-se um muro ou uma porta. Ser muro pode expressar uma característica de inacessibilidade. Alguém difícil de lidar, que prefere resguardar-se, sendo seletivo na escolha de seus relacionamentos. Os muros protegem, estabelecem perímetros, mas também aprisionam.

Há pessoas que desenvolveram tal característica depois de terem sofrido alguma decepção. Outras são assim desde que se entendem por gente. Não há qualquer demérito em ser muro. Temos que respeitar a personalidade de cada um. Mesmo porque, o evangelho jamais se propôs a mudar a personalidade, e sim, o caráter. Em vez disso, o Espírito Santo nos aperfeiçoa, reforçando certas características inerentes à nossa personalidade, direcionando-as ao cumprimento de Seu propósito.

Amar é acolher a pessoa tal qual ela é, sem tentar mudá-la, nem impor sobre ela nossas expectativas, sem projetar nela o que somos.

Paulo não deixou de ser colérico após sua conversão. Tampouco Pedro deixou de ser sanguíneo. Porém, ambos tiveram seu caráter transformado. Se Pedro era um muro, Paulo, sem dúvida, era uma porta. Cada um cumpriu o seu papel como apóstolo de Cristo.

Ser porta aponta para acessibilidade. Porta é passagem, entrada, acesso. Se o muro protege, a porta acolhe.

Assim como não há demérito em ser muro, não há mérito em ser porta. Cada qual tem um papel a cumprir. Todavia, devemos cuidar para dispensar a cada um o trato que lhe é devido.

“Se ela for um muro”, conclui Sulamita, “edificaremos sobre ela um palácio de prata.” Coisas de valor inestimável precisam ser cercadas de cuidado. Para isso servem os muros! Ainda que sejam pessoas difíceis de se lidar, com temperamento forte, pouco sociáveis, por vezes, introvertidas, elas servem a um propósito. Geralmente, são absolutamente confiáveis. Sabem guardar segredo. Protegem aquilo que amam. Portanto, vale a pena edificar um palácio de prata sobre elas.

“Se ela for uma porta”, prossegue Sulamita, “cercá-la-emos com tábuas de cedro.” Quem é porta costuma ser muito dado, por isso, carece de ser cercado, não no sentido de tornar-se refém, sendo privado de sua liberdade, mas no sentido de ser protegido. E repare que não se trata de um muro, mas de uma cerca. O muro é algo fixo, permanente, delimitador. A cerca de madeira pode ser removida rapidamente, adaptada, alargada. Quem é porta carece de ser protegido, mas não sufocado; precisa de cuidado, não de controle.

Sulamita termina sua participação no livro de autoria de seu amado afirmando ser ela mesma um muro:

“Eu sou um muro, e os meus seios são como as suas torres. Assim tornei-me aos olhos dele como aquela que traz prazer.”

Imagino que não deva ter sido fácil para Salomão conquistar o coração de Sulamita. Mesmo se apresentando como um muro, Salomão encontrou nela uma porta de acesso. Todo muro possui ao menos uma porta. Assim como toda porta precisa estar devidamente cercada. Toda armadura possui frestas, caso contrário, sufocará aquele que a veste. No final das contas, Sulamita tornou-se aos olhos de seu amado “como aquela que traz prazer.”

Portanto, ser o que se é não se constitui numa sentença.

Há potencialidades latentes que precisam ser descobertas por quem nos enxerga para além das aparências. Todos podemos nos tornar alguém que seja o motivo daquele “frio na barriga” do outro, sem que para isso tenhamos que negar nossa própria essência. Basta que descubra a porta escondida em algum lugar do muro.

Ninguém é descartável por ser o que se é. Permitamos que o outro se torne aos nossos olhos como aquele que nos dê prazer. Talvez isso dependa mais de nós mesmos do que dele. Talvez requeira tão-somente um novo olhar, ou, simplesmente, olhar por outro ângulo, parar de reclamar e aceitar o outro exatamente como ele é.

Isso se aplica não apenas ao campo dos relacionamentos, mas a qualquer outra área. Reconhecemos as potencialidades, preparamo-nos para as possibilidades e buscamos responder às demandas tais como se apresentam.

Autor: Hermes Carvalho Fernandes

Edição: Alex Rosset

Psicólogo, ativista, conferencista, autor, fundador da REINA (Rede Internacional de Amigos), bispo consagrado pela International Christian Communion (comunhão que reúne bispos de tradição anglicana/episcopal dos cinco continentes).

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