A pandemia deu uma freada no espetáculo da auto exposição, mas o mundo parece querer voltar ao normal, e voltar ao normal significa poder desfilar novamente, mostrando-se em forma para aparecer nas redes e arrasar, acumulando curtidas e apreciações de lindo/a.
Feios são os outros. Maus também. Ignorantes, nem se fala. Narcisistas que somos, achamos feio, mau e ignorante tudo o que não é espelho.
Vivemos tempos de bolhas, de replique do mesmo, de imunidade com a alteridade, de adoração a pequenos deuses criados a nossa imagem e semelhança e embarcamos na crescente onda de intolerância e violência ao diferente, à mulher, ao pobre, ao negro, ao índio, ao homossexual, aos de outro campo ideológico, aos de outra sensibilidade religiosa e cultural etc. Narciso nunca tira férias, contrariando Caetano.
Cada época tem seus mitos explicativos e a nossa não é uma época prometeica, nem abraâmica, nem marxista e, muito menos, crística. A nossa época é narcísica.
A pandemia deu uma freada no espetáculo da auto exposição, mas o mundo parece querer voltar ao normal, e voltar ao normal significa poder “desfilar” novamente mostrando-se em “forma” para aparecer nas redes e “arrasar”, acumulando curtidas e apreciações de “lindo/a”. A superficialidade da pele parece ser o que há de mais profundo em nosso tempo…!
Recordemos o mito.
Narciso era filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. A gestação foi penosa e indesejada, porque Liríope não amava Cefiso. Se fosse hoje, talvez a gravidez fosse interrompida, mas a ninfa, que não é de hoje, aguentou até o fim e, enfim, veio à luz um formoso e belo menino. Tão formoso e belo que causou apreensão. Em excesso, nem beleza é boa.
Para os gregos, origem cultural desse mito, a beleza em excesso assustava porque abria caminho para a hýbris, isto é, a desmesura, a insolência, o orgulho e a arrogância. Em outras palavras, quem é bonito demais, tende a “se achar”.
Mas, voltemos ao mito.
A preocupação, pelo excesso de beleza de Narciso, tomou conta de sua mãe Liríope porque entendia que a beleza concentrada no seu filho causaria desequilíbrio e poderia provocar a ira da deusa da justiça, Nêmesis.
O temor pelo futuro do filho a fez procurar o velho e cego Tirésias, o mais célebre adivinho da Grécia, para saber do seu destino e quantos anos viveria. Tirésias profetizou que a vida dele seria normal e longa “se não se visse”. Profecia estranha, mas na mosca!
Narciso cresceu e as ninfas e as moças enlouqueciam de paixão por ele. Elas jamais tinham presenciado tamanha beleza. E ele gélido, indiferente, “nem aí’, “na dele”. Não dava a mínima, para nenhuma das pretendentes. Até que apareceu o amor incontrolável de Eco que o perseguia por onde quer que ele fosse. Narciso a repeliu indiferente e ela caiu na mais absoluta solidão e tristeza.
Essa condição a levou a parar de se alimentar até morrer e se transformar num imenso rochedo capaz apenas de repetir os sons do que se diz. As demais ninfas ficaram furiosas e exigiram vingança de Nêmesis que, prontamente, condenou Narciso “a amar um amor impossível’.
E, então, o destino se fecha.
Era verão e Narciso saiu para a floresta para caçar e depois de muito andar, cansado e sedento, aproximou-se de uma límpida fonte de água para mitigar a sede. Debruçou-se sobre as águas e “viu-se” projetado, como num espelho, e não mais conseguiu fazer outra coisa senão se contemplar. Apaixonou-se pela própria imagem. Nêmesis cumpriu a maldição e Tirésias a profecia.
O mais belo dos efebos morreu, vendo-se. O corpo jamais foi encontrado e no lugar onde morreu nasceu uma linda e delicada flor de pétalas amarelas: narciso!
Moral da história.
Bom é tudo o que promove a vida e mau é o que promove e leva a morte. A morte, se for consequência da defesa de uma grande causa, como a causa de Jesus, que era de promover mais vida e vida abundante para todos, então não será em vão e produzirá muitos e bons frutos. Mas, se a morte for a consequências da incapacidade de sair de si para fertilizar o mundo com amor e solidariedade, então será a morte de uma vida sem sentido.
Será que estamos vivendo uma vida sem sentido, voltados para si, aficionados em aparecer mais do que ser, agarrados ao culto da imagem, mas vazios e ocos, obcecados pelo consumo e pouco afeitos à criatividade e ao amor ao próximo?
Se a resposta a essa pergunta foi sim, então está na hora de ultrapassarmos afase narcisista e voltarmos a cultuar o verdadeiro Deus e não suas sombras.
O mito de Narciso parece querer nos revelar essa sabedoria. O trágico destino de Narciso é, na verdade, uma lição para não seguirmos o mesmo caminho.
O discurso e a prática de autoreferencialidade, a pregação de si mesmo, tão criticados pelo Papa Francisco, precisam encontrar um lugar de saída para que o afogamento não seja o nosso destino. Isso vale, inclusive, para a nossa sociedade e para o nosso sistema político que não consegue encontrar o caminho de volta do buraco lamacento em que se meteu depois que elegeu como líder máximo um discípulo feito a imagem e semelhança da coisa mais feia nunca antes produzida.
Tenho prazer em pensar perguntas sem respostas que sejam definitivas. É a mania dos filósofos, perguntar, lá onde o senso comum não vê problema algum. Os teólogos também fazem perguntas essenciais, mas eles sempre são socorridos pelo além, pela revelação que vem de fora. O filósofo não. O filósofo está no limite da razão. No máximo pode ter intuições e inspirações humanas, demasiadas humanas, mas nunca divinas. O que lhe é limite é, contudo, sua grandeza. Leia mais!
Autor: Gilmar Zampieri
Edição: Alex Rosset