Narrar e amar: a importância estruturante do ato de contar histórias às criancinhas

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Mais importante do que aquilo que se conta é a maneira de contar. O contador de histórias enquanto amante do belo deve amar a criancinha. Quem conta histórias não ama somente as histórias, mas ama, principalmente, quem as ouve.

Este ensaio é uma indagação a respeito da seguinte questão: onde reside a força da contação de histórias para o desenvolvimento da fantasia infantil?

A partir da observação de que as criancinhas sentem a carência de afetividade, ou seja, de amor propriamente dito – e vendo que isso as motiva a juntar-se em grupos para ouvir histórias -, levanto a hipótese de trabalho de que, para a criancinha, o importante não é a história em si, mas a forma como ela é contada, ou seja, os gestos e voz do contador, que contagiam de amor o ambiente e cativa o espírito delas.

Em outra reflexão neste site, já escrevemos: não é preciso ter curso para contar histórias, pois todos nós contamos histórias o dia todo das nossas vidas, das vidas dos nossos filhos, vizinhos e amigos. O importante e o cuidado que se deve ter é conhecer a história que se vai contar para não gaguejar na hora ou esquecer algumas partes, por isso faz-se necessário que o bom contador saiba improvisar, também. Leia mais!

A criancinha ouvinte de histórias ama e é amada. Ao abrir o coração e a fantasia, ela deixa-se envolver pelo momento em que está ouvindo a história, aprendendo tanto com o conteúdo da história quanto pela forma pela qual é narrada, que é a grande arte do contador de histórias que seria o amante principal.

A criancinha se sente hoje muito isolada e sozinha no mundo, não consegue sentir-se amada. Abandonada ao rádio ou a televisão e sem contato mediador com o livro, sente-se desmotivada, desorientada, apática e destituída da capacidade de pensar e fantasiar, o que lhe acarreta sérios problemas existenciais.

Sem amor, se sente desprotegida para lidar de forma mais segura e criativa com os problemas e as dificuldades que o mundo oferece.

Winnicott defende o ato de amparar e cuidar naquilo que denomina holding. Platão também fala desse amor no seu diálogo “O Banquete” em que Eros aparece através do diálogo e busca compreender o amor através do filosofar e do saber. O amor em Platão está entre a pobreza e a riqueza, a ignorância e sabedoria, o mortal e o imortal, logo o amor também está entre o contador de histórias e a criança.

O contador é o elemento conectivo entre a criança e o livro. É preciso que o contador de histórias saiba narrar com amor criando um vínculo da criancinha com o saber virtuoso.

Platão enquanto contador de histórias narra seus mitos afirmando ser possível através deles levar a verdade às criancinhas mesmo que seja em forma de metáforas. Verdade essa constituída de ensinamentos de valores e virtudes. Enquanto contador de histórias Platão procura despertar o amor no seu ouvinte. Aquele que busca o saber também busca o amor, pois Eros como já disse Platão é amor.

Logo, as criancinhas buscam no saber não só contadores que instruam e divirtam, mas que as amem contando histórias com o coração e com palavras que permeiem o espírito infantil. O contador deve ser sábio no que concerne ao cuidado e zelo com a criancinha.

A mãe é a responsável por esse cuidado e zelo da criancinha, mas atualmente os pais não têm tempo para essa dedicação exclusiva e entrega o filho a uma vida solitária e difícil quando outras pessoas são pagas para cuidar delas e não para amá-las. Muitas vezes a criancinha se entrega a pessoa que está ao seu lado e quando seu amor não é correspondido a incompreensão diante do mundo assusta e causa traumas insuportáveis.

O contador de histórias vai amparar e cuidar dessa criancinha cheia de medos e temores em relação à vida e as pessoas que a cerca. Zeloso com os seus gestos e carinhos, sua maneira de narrar busca o sorriso e a alegria de viver na criancinha perturbada por um mundo violento e desumanizado. Através do contador de histórias a criancinha percebe que ainda é possível amar e ser amada, principalmente nas situações mais difíceis da vida em que ouvir uma história acalenta a dor e alimenta o coração.

Além de Platão e Winnicott, também explorarei esse zelo e amor do contador de histórias fazendo uma comparação com os mitos de Narciso e de Édipo.

Sendo Narciso um jovem belo, como toda criança ele necessita do amor de um bom contador de história para aprender a amar-se logo esse contador de histórias seria Eco. Já o espelho que na psicanálise é visto como a visão da nossa alma, a visão que temos de nós, seriam as histórias contadas.

Sendo o contador de histórias visto como Eco ele poderá ensinar aos vários Narcisos-crianças ouvidoras de histórias que o mundo é belo e elas não estão condenadas à morte devido essa beleza, pois o amor de Eco (contador de histórias) que deixará de evocar ecos e transmitir-lhes a palavra, ou seja, aqui trabalharemos com a possibilidade de Narciso mesmo tendo sido condenado à morte não morrerá porque tem um espelho que lhe ensina a beleza da compreensão e assimilação da história e tem Eco que lhe conta histórias belas.

Eco será amada por Narciso porque sabe como amá-lo a partir do zelo e cuidado estudado através do conceito de holding, de Winnicott, e o espelho será esse mundo de histórias belas que são apresentadas às crianças pelo contador de histórias.

Da mesma forma que ocorre com Narciso, também encontraremos em Édipo a condenação à morte, mas esse será zelado e receberá cuidados e amor da esfinge que, de uma certa forma, é uma contadora de histórias astuta e sábia com os seus enigmas. Aqui, tratamos de uma questão importante no que diz respeito aos contadores de histórias para criancinhas com câncer, vítimas do vírus da AIDS ou de alguma doença incurável em que estando praticamente perto da morte poderão prolongar suas vidas ou transformar a dor num sorriso através das histórias contadas pela esfinge.

Assim, nem Narciso e nem Édipo morrerão por falta de amor e zelo, mas estarão fortes o suficiente para escapar dos seus destinos através das histórias que lhes foram contadas pelo bom contador de histórias.

Usarei uma metáfora para apresentar os vários Narcisos e Édipos que existem no mundo necessitando do amor de uma Eco ou de uma Esfinge, para que as suas vidas tomem rumos de um bom pensar, de um caminhar firme em relação ao futuro, de um olhar cheio de esperança para o amanhã e o que é mais importante liberto de medos e traumas que tanto sufocam os adultos trazidos de uma infância descuidada.

Quantos meninos e meninas passam por nós todos os dias necessitando ouvir uma história, com medo de se olhar no espelho da vida ou de encontrar-se com uma esfinge e não saber quem são ou o que dizer. É preciso amar as criancinhas, ter paixão como Eros para ser um bom contador de histórias.

Não adianta pintar-se, fazer cursos de performance, fazer teatro, ler livros sobre técnicas de contar histórias se você não tem o dom da história dentro de você, aliás, se você não tem o amor para oferecer a uma criancinha através da sua fala, da sua palavra, do som maravilhoso que sai da sua boca.

Este ensaio se propõe a investigar o papel e a importância do amor na constituição do imaginário infantil, tomando por base as teorias de Winnicott, o amor de Eros segundo Platão, o mito de Narciso e Édipo como elementos para construção do contador de histórias que tem amor pela sua arte e o encontro com o dom de contar histórias.

Mais importante do que aquilo que se conta é a maneira de contar. O contador de histórias enquanto amante do belo deve amar a criancinha. Quem conta histórias não ama somente as histórias, mas ama, principalmente, quem as ouve.

É preciso que o contador de histórias seja um amante do tipo Eros, segundo Platão no seu diálogo O Banquete, quando nos diz: “e aquele que em tais questões é sábio é um homem de gênio, enquanto o sábio em qualquer outra coisa, arte ou ofício, é um artesão.” Todo artesão faz seu trabalho com amor, logo o contador de histórias também narra com amor.

A criancinha que ouve histórias com contadores amantes está mais propícia a enfrentar a vida e os seus obstáculos de forma a não se machucar nem se sentir sozinha no mundo. O contato da criancinha com o contador de histórias pode criar vários vínculos afetivos, tais como: amizade, carinho, afeição, companheirismo, coragem, esperança, paciência, prudência, temperança e sabedoria.

O contador de histórias, ao mesmo tempo, que narra também transmite valores e virtudes para uma vida melhor, proporcionando à criancinha a ideia de que é amada do jeito que é, sem querer mudar ou ser igual ao amiguinho que todos gostam.

A criancinha deve se sentir amada sem precisar mudar. Por isso, o contador de histórias precisa amar e zelar essas crianças como se elas fossem Narciso ou Édipo.

O contador precisa fazer das histórias contadas um espelho magnífico, real, encantador, porém que possibilite a criancinha enxergar-se dentro dessas histórias utilizando seu imaginário infantil para isso. É importante alimentar o imaginário sempre, para que a criança possa assim poder brincar com a dura realidade que a acompanha todos os dias.

Para Winnicott, a criança precisa de amparo e cuidados. A criancinha cria seu mundo baseada no mundo das pessoas que estão ao seu redor, primeiro com os pais depois com os mestres. Sendo os pais seus primeiros contadores de histórias ela se sente protegida e amada. Sabe que nada lhe faltará. Ouvir histórias na hora de dormir é um momento grandioso e gratificante à criancinha. No entanto, muitos pais não têm mais tempo para fazer isso. Essa tarefa passou para o contador de histórias.

É importante que o contador olhe com atenção para cada criancinha que está lhe ouvindo e não dê preferência a uma ou a outra. A narrativa deve ser branda e suave e a voz só deve ser exaltada quando a história pedir, mesmo assim com o cuidado que se faz preciso.

O contador deve criar um ambiente de magia e encanto onde tudo se identifique com o amor.

Na obra de Winnicott percebo que no conceito de holding, as mães dedicam carinho, atenção, zelo, cuidam da alimentação e da higiene da criancinha, das suas necessidades primeiras quando não podem resolver sozinhas. É essa dedicação das mães que as criancinhas conseguem perceber nos contadores de histórias que narram com amor.

É preciso antes de tudo cuidar do espírito da criança e não se deter apenas na narrativa. Antes e depois de contar a história o contador estará vivo na criancinha por um determinado tempo, e esse tempo pode ser definido por ele a partir da forma que expressar seu amor. Quanto maior for o amor do contador de histórias mais tempo permanecerá vivo no pensamento da criancinha.

Através do conceito de holding mostro como mudar a vida de várias crianças baseadas em Narciso e Édipo que sofreram com a falta de amor e cuidado.

Muitas criancinhas têm passado por tratamentos médicos e psicopedagógicos com traumas e medos, hiperativas, mentirosas, tímidas, baixa capacidade de concentração, redução da aprendizagem e o que é pior, vítimas da incompreensão dos adultos.

O mundo moderno disponibiliza à criança os brinquedos eletrônicos, o videogame e a Internet. O isolamento se torna cada vez mais frequente. A criancinha moradora de condomínios fica presa aos muros altos e cheios de proteção. A criancinha moradora de bairros da periferia se tranca dentro de casa com medo da violência.

Nas escolas, os professores não se preocupam em dar-lhes amor demasiado amor, mas em ensinar as matérias básicas para a aprendizagem. Quando chegam a casa, diversas tarefas lhes esperam.

Assim, embaralhada com um mundo que só exige de si a criança começa a achar a vida difícil e as pessoas não se diferenciam umas das outras, sendo sempre vistas como adultas que só sabem mandar. Para essas crianças o mundo cobra demais e nada lhes oferece.

Logo, suas emoções serão terrivelmente prejudicadas e pedirão ajuda num grito com o professor, numa briga com o colega da turma, na quebra do vaso mais querido da mãe. A criancinha nessa fase está pedindo para ser ouvida. É aqui que entra a responsabilidade de amparo e zelo dos pais e daqueles que cuidam da formação do espírito da criança. 

Narrar com amor é doar um pouco de si ao outro. O contador de histórias doa o seu amor à criança mostrando-lhe a vida que parece só existir nos sonhos. Através da forma como o contador narra as histórias, a criancinha pode criar uma ponte entre o mundo imaginário e o real, comparando o amor que há num e no outro. Trazendo o amor do imaginário para o real, possibilitando um viver mais feliz e sábio.

O caminho que pretendo percorrer consistirá na comparação do conceito de amor no Banquete, no conceito de holding, de Winnicott e nos mitos de Narciso e Édipo como criadores de crianças “brincantes”, ou seja, crianças que sabem brincar com as coisas mais simples do mundo fazendo da vida uma gostosa brincadeira por mais difícil que ela seja.

Nesta comparação buscarei analisar qual a relação existente entre os Eros, Narciso, Eco e o conceito de holding, detendo-me na maneira de contar histórias encontrada nas diversas partes do mundo, seja em escolas, hospitais, asilos, abrigos, shopping centers, livrarias, festas e eventos.

Analiso aqui a forma como as criancinhas das mais diversas classes socais se sentem ao ouvir histórias comparando a vida dessas crianças com a vida daquelas que não escutam através da teoria e prática.

Busco mostrar que a forma de narrar do contador de histórias é imensamente importante para transmitir o amor à criança. Indago se a forma de narrar é uma arte que se adquire com a técnica, o dom e ou a experiência? Mais ainda: se somos inspirados pelos deuses para contar histórias.

Além de apresentar também as necessidades das criancinhas, seja em momentos de raiva e abandono, no ato de ouvir histórias para aprenderem a lidar com as próprias emoções. A criancinha abandonada pelas ruas de uma cidade grande ou um beco sujo de lama preferirá uma história contada por um Eco (contador amante) ou trocará esse por um ato de violência ou delinquência? Fica a questão. 

Esse movimento da arte chama atenção por onde passa, pois a literatura passa a ser vista com outros olhos, e, acima de tudo, sentida. Assim, percebe-se, por parte dos espectadores, que a literatura mexe com as emoções e sentimentos de cada ser humano. Coisa que é inerente à arte no sentido amplo. (Laércio Fernandes dos Santos) Leia mais!

Autora: Rosângela Trajano

Edição: Alex Rosset

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