Nota de falecimento

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A pressa se apressa cada vez mais. Viramos presas fáceis de uma pressa difícil. Eu li nos jornais. Artifício. Artificiais.

Alguém, de súbito, pergunta:

– Para onde vamos com tanta pressa?

Um silêncio abismal ecoa, de apressado em apressado.

Não estão livres. Estão prensados, formatados, compactados, estressados demais.

– Alguém sabe para onde estamos indo?

– Segue, meu caro, segue logo, é preciso ir. Não há tempo para questionar.

Continuam nessa, seguindo a pressa. Apressados, passados, ultrapassados pelos que vem logo atrás com pressa ainda maior. A pressa pressiona, não deixa parar.

Reuniões infinitas. Decisões proféticas. Mas eis que é preciso fazer. Não precisa cumprir o acordo. Tudo flui! O planejamento obstrui. Cada um faz como quer. Depois, todos reclamam e apontam os erros de cada um. Outra reunião. Outra decisão. Fechou a porta. Não importa, pode abrir se quiser.

Viva a democracia. Orgia involuntária. Burocratas, tecnocratas, psicopatas! Um bando de patas batendo lata vazia. O que fazer todo mundo sabe, mas ninguém sequer fazia. ‘Homo Faber.’ Fobia de não fazer.

– Segue companheiro! Anda logo, vai ligeiro. Olha a pressa que te espia pela fresta do banheiro. O que era público virou ‘privada’!

– Hei! Alguém me responda? Isso é uma piada.

– Segue a onda camarada. A vida hoje é assim, corrida. Não há tempo para parada. Segue, segue, segue, próxima saída.

E lá se vai, parece rápido, mas está num jegue.

Segue, segue, segue…. Não importa o que se persegue.

-‘Êita diabo doido’ essa vida perseguida.

A correria empurra o dia. A noite é um açoite: tempo demais para parar.

Levanta, vai para sala, faz planilhas, arruma a mala, corre para o aeroporto.

– Está morto?

– Ainda não.

– Que bom. Manda continuar.

E lá vai o apressado. Volta estressado.

– Pera aí, perdi o celular. Para tudo, acabou-se o mundo. Não, não. Está tranquilo, coloquei para recarregar. Liga no outro ou manda WhatsApp, chama no Skype, SMS, até parece que não sabe usar? Vê se me esquece, preciso andar. Não grite, marca reunião no Meet e deixa estar.

– Acabei de ‘curtir’. Li no ‘Face’. Publiquei no ‘My space’. Não tem tempo para ler? Vai no ‘Twitter’, resumi para você! Cento e quarenta caracteres! Cadê meus alteres? Preciso malhar.

– Morreu? Faz quanto tempo já?

– Pelo jeito sim. Faz quinze minutos que não curte nem compartilha.

– E o trabalho?

– Nem me fale. Sobra tempo para nada mais. Essa vida está muito apressada. Capitalismo selvagem. Matilha! Sai para lá Satanás! Vadiagem aqui não cabe mais.

– É, virou malandragem. Real ou virtual, tudo tão oculto na sempre visível ‘time line’.

– Então, morreu mesmo?

– Está ‘off line’. Então, morreu.

– Vai no velório? Eu não posso, estou com pressa.

– Pois é, nem eu!



Sem a pretensão de esgotar o assunto, enquanto a técnica se desvincular da ciência humana, estaremos em um mundo que evolui caminhando a passos largos para a desumanização. Essa “rede de relações”, esse emaranhado de nós e fios que formam a sociedade complexa, precisa se converter em ferramenta para a educação dos afetos, para a potencialização da compaixão, para a vivência da solidariedade.

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