“Novo normal”: contradição em termos!

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Quem sabe o “novo normal”
faça sentido apenas de longe.
Numa distância que acomoda;
não incomoda”.


A expressão “novo normal”, as vezes “novíssimo normal”, tem sido usada como uma maneira de alimentar o debate sobre a margem a que se haveria de chegar no pós-travessia da pandemia Covid-19. Um debate necessário. Mas, a expressão pode levar a um uso falacioso (uma contradictio in adjecto), ou uma figura de linguagem do tipo oximoro (de péssima cepa) [1], afinal, como ser novo, se normal; como ser normal, se novo?

Não gosto de uma discussão feita assim, parece que está de modo enviesado. Me somo ao que diz Lilia Moritz Schwarcz, no artigo “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal’)” [2]: “Considero, assim, o “novo normal” um movimento bastante conservador; no sentido primeiro da palavra: conservar. Afinal, esse seria um “novo normal” para quem? Qual seria o nosso coeficiente de “normalidade”? E qual a régua que mede e distingue o que é “normal” do que é “anormal”, ou, ainda, um “novo normal”? […] A pergunta, mais uma vez, é a seguinte: “novo normal” para quem? […]

Vou evocar um por aqui: “A exceção confirma a regra”. Se o “novo normal” for uma espécie de estado de exceção, ele (então) confirma a regra. Se não for, se tiver vindo para ficar, será mais uma das nossas convenções conservadoras que pretendem manter, não revolucionar”. Inspirada num dos versos de Caetano Veloso em “Vaca Profana”: “de perto ninguém é normal”, afirma “Quem sabe o “novo normal” faça sentido apenas de longe. Numa distância que acomoda; não incomoda”.

Fico me perguntando na leitura que faço dos que se apressam com o “novo normal”, preocupados que estão com a tão “insuportável anormalidade” da pandemia: como será o “novo normal” para os/as desempregados/as, os precarizados/as, os subempregados/as, os/as “sem-direitos”, os/as de sempre, os/as de antes e os/as de agora, ainda mais precarizados em razão do impacto que a crise pandêmica produziu em suas vidas? Haveria “vidas matáveis”, “humanos descartáveis”, “humanos essenciais” no “novo normal”?

Será um mundo no qual haverá igual espaço para todos/as; no qual todos os direitos serão para todas/os; no qual “todas as vidas valem”?

Estamos em condições de dar vazão ao desejo do impossível e de exercitar criativamente a imaginação política para desenhar os contornos de novas possibilidades para este “novo normal”? Ou ele será nada mais do que “mais do mesmo”? Ou o “mesmo de sempre” ainda que depois de uma pandemia? O que significa um retorno “gradual e seguro” ao “novo normal”? Quem e como se decidiu isso?

Teremos coragem de “parar” ou ao menos de desacelerar?

Seguiremos acreditando no “progresso a qualquer custo ou adotaremos medidas e ações orientadas pelo “decrescimento”? São tantas questões que talvez provoquem certo cansaço! Dão o que pensar (e o que fazer)! São questões que me coloco e que compartilho.

Não sou dos que não querem este debate. Pelo contrário. O fundamental é debater, e muito. Ouvir as múltiplas vozes, particularmente aquelas que, de regra, são normalizadas como não sendo normais e, por esta razão, impedidas de participação. O debate há que ser amplo e longo. Não dá para ser feito de modo apressado.

Haverá que ter orientações e critérios para sua efetivação e as próprias regras do debate, em perspectiva democrática, estão na ordem do dia do debate. Ou seja, não dá para partir de princípios e regras dados, certamente, inclusive, porque são parte da “normalidade” que gerou a “anormalidade” da pandemia.

A radicalidade do debate e os sujeitos que dele farão parte também são parte deste processo a ser construído. Enfim, ao debate… sem pressa, sabendo que, como lembra Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas, a margem a que se chegar certamente será muito diferente daquela que a melhor formulação desenhar.

Ademais, entendemos que dificilmente a situação a que se vier a chegar será uma completa invenção, desde o zero. Não se trata de “sacar um coelho da cartola”, com todo o respeito à mágica, tão salutar para nossa saúde mental. Talvez o que esteja mesmo em questão é o sentido de “normal”, de “normalidade”, e, inclusive, entender que sua definição, crítica ou tácita, certamente já incluirá o seu oposto (a “anormalidade”) ou aquilo que for excedente a ela. Não se trata aqui de defender sua ausência. Trata-se de refletir sobre os contornos e o conteúdo do que se entenderá “normal” (e o que nele não vai caber).

Encerro dizendo que talvez o mais importante neste momento seja exercitar a criatividade para dinamizar possibilidades e, acima de tudo, alimentar o “desejo do impossível”, o “desejo do infinito”, a imaginação política, para produzir um “inédito viável” com alternativas plurais, pluridimensionais e omnidimensionais. É o que me parece oportuno propor se não quisermos sucumbir ao funcionalismo positivista da utilidade resolutiva orientada pela eficiência tout court somada a uma lógica de competição com baixa força cooperativa e solidária. Ao debate, sabendo que a própria dinâmica de debate também faz parte desta construção…




“Na sociedade, existe um conjunto de anormalidades que precisam ser enfrentadas sem máscaras. Entre elas, a fome, a miséria e as desigualdades sociais. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano/2019da ONU, o Brasil é o 7º país com mais desigualdade no mundo”. (Dirceu Benincá em “O normal e o anormal na (des)ordem do dia”. www.ihu.unisinos.br/599158-o-normal-e-o-anormal-na-des-ordem-do-dia.



Notas

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