Os pobres merecem mesa, pratos, talheres,
comida diversificada e saudável para alimentar o corpo,
pacificar a alma e liberar os sonhos de uma
sociedade justa, fraterna e solidária.
Há alguns ditos, fatos e temas que, pela carga simbólica neles conectados, viralizam e tomam conta do debate público, para o bem ou para o mal. Nem tudo o que viraliza, isto é, se espalha rapidamente, é merecedor de análise e de alguma reflexão mais apurada.
Fofoca também viraliza e nem por isso merece atenção acadêmica. Contudo, a polêmica que tomou conta das redes sociais em torno da Farinata, um composto alimentar que reaproveita alimentos em fase de vencimento de validade, merece a nossa atenção, não pelo poder de nutrição ou não da ração humana, como alguns pejorativamente definiram, mas pelo poder simbólico que a compõe.
O poder do símbolo está em sintetizar e simplificar realidades complexas. Nesse aspecto a Farinata é o que há de mais simbólico.
Em primeiro lugar é símbolo da lógica capitalista. Você sabia que o que move os empresários a colaborar no projeto da prefeitura de São Paulo nem é tanto pelo benefício que isso pode eventualmente trazer para a nutrição das crianças e pobres assistidos pela rede municipal, mas a vantagem que eles podem tirar do processo todo?
Sim, o custo das empresas para descartar alimentos prestes a vencer é muito alto e o projeto lhe beneficiam sobremaneira. E não só isso, a prefeitura tem sinalizado para a isenção fiscal das empresas que colaborarem no projeto. Não imaginem vocês que os empresários viraram humanistas da noite para o dia…!
“Estamos, agora, a um passo de perder a inocência alimentar, inocência no prato. O prato e o que entra nele é algo tão natural que, raramente, e poucos se interrogam, seriamente, quanto à necessidade de pensar e escolher consciente e responsavelmente o que se come. O ato de comer é um ato ético, ou anti-ético. É um ato ético sempre que nele entra o outro reconhecido como outro, respeitado como outro em seus direitos, e anti-ético quando negamos a alteridade do outro enquanto outro”. (Gilmar Zampieri)
Eles são solidários por egoísmo. Seguem a lógica da filósofa americana Ayn Rand que diz que há uma virtude no egoísmo, na medida em que ao estimular o egoísmo de alguns, o resultado é bom para todos.
Isso é grave, mas não é o mais grave. O mais grave vem da fala conjugada do prefeito da cidade, Dória, e do cardeal Dom Odilo Scherer. A síntese é: “Pobre não tem hábito alimentar, pobre tem fome”!
Para um desavisado essa é apenas mais uma frase de efeito e de marketing. Mas é mais que isso. Ela é, antes de tudo, a síntese mais acabada da mentalidade elitista e pós-humana que tem tomado conta do país. As elites têm flertado com a volta da escravidão, com a exclusão da mulher, com a degradação da natureza e com o sofrimento e morte sistemática dos animais e com o total descaso para com os pobres.
Tudo está conectado, diz o Papa Francisco. E esse é um caso de conexão profunda. Dizer que pobre não tem e não se importa com hábitos alimentares, com boa alimentação, com confraternização, com comensalidade, mas só quer comer, como sinônimo de nutrição, é reduzir uma pessoa a uma árvore.
Comer não é sinônimo de nutrição, como a fala dos ilustres parece pretender dizer. A nutrição é um ato biológico. As árvores também se nutrem! Comer é um ato humano e espiritual.
O que faz do comer um ato espiritual e humanizador, entre outras coisas, é a comensalidade. A comensalidade, comer juntos, comporta ritos! Ao redor da mesa nos reunimos na paz e alimentamos também a alma!
A “ração humana” é uma afronta a pessoalidade e humanidade dos pobres que merecem projetos de libertação da condição de pobreza e não a sua perpetuação, para serem objeto de assistencialismo egoísta e pacificador das consciências, através de “bolotas” nutritivas.
Os pobres merecem mesa, pratos, talheres, comida diversificada e saudável para alimentar o corpo, pacificar a alma e liberar os sonhos de uma sociedade justa, fraterna e solidária.
Qualquer projeto que não tenha isso como horizonte, não pode merecer apoio de quem segue Jesus, que deseja vida em abundância para todos e não migalhas humilhantes.