O cuidado e o futuro dos espoliados e da Terra

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Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado.

A categoria cuidado mostrou-se a chave decifradora da essência humana. O ser humano possui transcendência e por isso viola todos os tabus, ultrapassa todas as barreiras e contenta-se apenas com o infinito. Ele possui algo de Júpiter dentro de si; não sem razão, pois dele recebeu o espírito.

O ser humano possui imanência e por isso se encontra situado num planeta, enraizado num local e plasmado dentro das possibilidades do espaço-tempo. Ele tem algo da Tellus/Terra dentro de si; é feito de húmus, donde deriva a palavra “homem”.

O ser humano encontra-se sob a regência do tempo. Este não significa um puro correr, vazio de conteúdos. O tempo é histórico, feito pela saga do universo, pela prática humana, especialmente pela luta dos oprimidos, em busca da sua vida e libertação.

Constrói-se passo a passo; por isso, é sempre concreto, concretíssimo. Mas, simultaneamente, o tempo implica um horizonte utópico, promessa de uma plenitude futura para o ser humano, para os excluídos e para o cosmos. Somente buscando o impossível se consegue realizar o possível. Em razão dessa dinâmica, o ser humano possui algo de Saturno, senhor do tempo e da utopia.

Mas não basta dizer tais determinações. Elas, na verdade, dilaceram o ser humano. Colocam-no distendido e crucificado entre o céu e a terra, entre o presente e o futuro, entre a injustiça e a luta pela liberdade.

Que alquimia forjará o elo entre Júpiter, Tellus/Terra e Saturno? Que energia articulará a transcendência e a imanência, a história e a utopia, a luta pela justiça e a paz, para que construam o humano plenamente?

É o cuidado que enlaça todas as coisas; é o cuidado que traz o céu para dentro da terra e coloca a terra dentro do céu; é o cuidado que fornece o elo de passagem da transcendência para a imanência, da imanência para a transcendência e da história para a utopia. É o cuidado que confere força para buscar a paz no meio dos conflitos de toda a ordem. Sem o cuidado que resgata a dignidade da humanidade condenada à exclusão, não se inaugurará um novo paradigma de convivência.

cuidado é anterior ao espírito (Júpiter) e ao corpo (Tellus). O espírito humaniza-se e o corpo vivifica-se quando são moldados pelo cuidado. Caso contrário, o espírito perde-se nas abstracções e o corpo confunde-se com a matéria informe.

cuidado faz com que o espírito dê forma a um corpo concreto, dentro do tempo, aberto à história e dimensionado para a utopia (Saturno). É o cuidado que permite a revolução da ternura, ao tornar prioritário o social sobre o individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida dos humanos e de outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial, conectado com tudo e com todos no universo.

cuidado imprimiu a sua marca registada em cada porção, em cada dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano far-se-ia inumano.

Tudo o que vive precisa de ser alimentado. Assim, o cuidado, a essência da vida humana, precisa também de ser continuamente alimentado. As ressonâncias do cuidado são a sua manifestação concreta nos vários aspectos da existência e, ao mesmo tempo, o seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primordial, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado , o ser humano, como um tamagochi, definha e morre.

Hoje, na crise do projecto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda a parte. As suas ressonâncias negativas evidenciam-se pela má qualidade da vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência.

Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido na sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa de se voltar para si mesmo e de redescobrir a sua essência, que se encontra no cuidado. Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos nós.

Autor: Leonardo Boff, em conclusão de seu livro Saber Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis, Ed. Vozes, 1999

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