Dizer poeticamente é um jeito de pronunciar o mundo sem que aquilo que não foi agarrado pela palavra, seja invisibilizado, mas fique ali, reivindicando a possibilidade de ser dito.
Giorgio Agamben diz que somente a palavra coloca o ser humano em contato com as coisas mudas, eu diria que somente a palavra nos põe em contato com a língua das coisas do mundo. Acrescento, contudo, que escolher palavras para dizer também é uma maneira de esquecer outras, então, a reivindicação da visibilidade, o trazer para a fenomenalidade do olhado, exige-nos outras formas de dizer que não sejam repletas de violência e emudecimento. Exige-nos reconhecer a dificuldade própria dos limites dos discursos que nos informam, constituindo práticas de poder e domínios do saber (em operação).
Penso que permanece sendo uma questão fundamental a relação existente entre a linguagem e a realidade, quando ou de que modo o dizer toca a realidade, o que eu chamaria de eco ontológico da reverberação do que se mostra. Não foi por mera escolha estilística que Nietzsche concedeu à arte e não à filosofia sua relação mais estreita com o real/vital, mas por considerar que a arte sabe-se interpretação. Também Heidegger recorre à poesia no seu caminho para a mostração do ser, pois somente ela seria capaz de dizer, sem que ao dizer, estivesse obliterando nosso acesso aos modos originários de dação.
A realidade resvala, não se deixa dizer na sua totalidade, até porque estamos imersos na sua geografia, e todas as vezes que pretendemos engessar a expressão da realidade, corremos o risco de tomar uma perspectiva como se fosse a própria realidade. Disso não decorre a impossibilidade do dizer, mas a tarefa sempre reiterada de tentar dizer sem determinar, sem o prejuízo da palavra obsequiosa.
Considero enormemente que a verdade continua sendo o mote não só da filosofia, mas das mais variadas relações que cultivamos na direção do mundo. A questão é como entendemos a verdade, para mim, há um resto que independe da posição do indivíduo, contudo, falar (d)este resto, impõe um gesto radical: compreender que a verdade, que a realidade, não é fruto de uma relação essencial/metafísica, mas de uma relação radical em que não somos nós que constituímos o fenômeno para o qual nos direcionamos. Portanto, talvez nossa questão não seja com a verdade, mas como dizê-la sem que ao dizê-la estejamos (e com violência) assumindo um único jeito de expressar as coisas do mundo.
Retomando, a palavra nos coloca em contato com a língua das coisas do mundo, ouvir o eco disso que nos fala é a tarefa do dizer, talvez a única que seja capaz de nos libertar dos discursos que impõe verdades e maneiras específicas de julgar, sentir, agir e compreender o mundo.
Nunca é tarde para lembrar de um velho pensador, Aristóteles, quando reconhece na thaumazein a relação primordial com a emergência do mundo, o arrebatamento, o espanto com o acontecimento da vida, da realidade. Caminho que leva ao descortinar do mundo. Também, ao conferir aos sentidos o valor do que nos acontece, emprestando significado ao ofício da experiência do existir.
Dizer poeticamente é um jeito de pronunciar o mundo sem que aquilo que não foi agarrado pela palavra, seja invisibilizado, mas fique ali, reivindicando a possibilidade de ser dito.
Autora: Marli Silveira
Acadêmica Academia Rio-Grandense de Letras. Autora da crônica “A banalidade do mal”: https://www.neipies.com/a-banalidade-do-mal/
Edição: A. R.
Poesia é música, é verdade, é amor entre aspalavras.