O elo perdido

1876

Nós somos o elo que an­dava per­dido. No en­tanto, ele sempre es­teve na nossa frente. Basta-nos mirar no es­pelho. O ver­da­dei­ra­mente hu­mano é ainda um projeto de fu­turo.

Há tempos a ci­ência in­ves­tiga o elo per­dido entre o ma­caco e o homem. Já há con­senso de que Darwin tinha razão. Até o papa João Paulo II, que não era de dar o braço a torcer, ad­mitiu a per­ti­nência do darwi­nismo. O que obrigou os bispos da Ar­gen­tina, adeptos fun­da­men­ta­listas do cri­a­ci­o­nismo, a sus­pender, nas es­colas ca­tó­licas, o en­sino de que entre Deus e nós não houve outros in­ter­me­diários senão AdãoEva.

Os cri­a­ci­o­nistas não podem ir além da ideia de um deus oleiro que, tendo brin­cado com ar­gila e so­prado o barro, deu vida às maquetes hu­manas. Se dessem um passo a mais na ge­ne­a­logia do pri­meiro casal fi­ca­riam en­ca­la­crados. Se Adão e Eva ti­veram apenas fi­lhos ma­chos, CaimAbel e Seth, como se ex­plica essa vasta des­cen­dência da qual fa­zemos parte? Se­ríamos todos fi­lhos e filhas de um pa­ra­di­síaco in­cesto?

Como os an­tigos he­breus não frequen­taram a uni­ver­si­dade e, por­tanto, es­tavam isentos da lin­guagem aca­dê­mica, abs­trata, em toda a Bí­blia não há uma só aula de dou­trina ou te­o­logia. Sua lin­guagem é a do mi­neiro, à base de “causos“. Vê-se o que se lê.

lin­guagem figurativa, própria dos povos semitas, trans­forma con­ceitos em ima­gens. O vo­cá­bulo he­braico ‘terra’ deu origem a Adão, e ‘vida’ a Eva, numa configuração plástica da noção de que Deus criou o mundo e a humanidade. O curioso é que o autor bíblico sugere que a vida veio da terra, o que só foi constatado pela ciência no século XIX, quando foram descobertas as leis da evolução do Universo.

A Bí­blia quer en­sinar apenas que Deus é o cri­ador do Uni­verso, in­cluídos os hu­manos que, em­bora obra di­vina, pa­decem de duas li­mi­tações in­trans­po­ní­veis: têm prazo de va­li­dade e de­feito de fa­bri­cação. O que a dou­trina cristã chama de pe­cado ori­ginal.

Isto é óbvio: todos morrem um dia, mal­grado as aca­de­mias de le­tras re­pletas de imor­tais, e não são poucos os que de­mons­tram grandes de­feitos de fa­bri­cação – ao longo da vida tornam-se cor­ruptos, men­ti­rosos, criminosos, opor­tu­nistas, se­gre­ga­dores, ma­chistas, homofóbicos, cí­nicos. Em suma, ho­mens sem qua­li­dade, diria Musil. E muitos com uma cu­riosa ten­dência para a po­lí­tica.

Quando teria se dado o salto do símio ao hu­mano? No dia em que um ma­caco uti­lizou um pe­daço de pau como ex­tensão das mãos, como mostra Stanley Ku­brick, no filme “2001, uma odis­seia no es­paço“? Ou no dia em que o oran­go­tango de­cidiu, ao con­trário de toda a fa­mília zo­o­ló­gica, deixar de comer quando tem fome e marcar hora para as re­fei­ções? Teria sido na­quela tarde de sá­bado em que o ma­caco tem­perou a caça com pi­menta e assou na brasa que res­tara de uma quei­mada pro­du­zida pelo re­lâm­pago, sem saber que in­ven­tava o chur­rasco?

Um ver­da­deiro hu­mano seria uma pessoa do­tada de cri­a­ti­vi­dade. Quem já viu uma casa de joão-de-barro com uma va­ran­dinha ou um pu­xa­dinho para abrigar o filho recém-ca­sado? Ocorre que a cri­a­ti­vi­dade é também um atri­buto dos ban­didos. Talvez seja me­lhor ca­rac­te­rizar o hu­mano por suas vir­tudes: uma pessoa ge­ne­rosa, al­truísta, ética, so­li­dária, amo­rosa, capaz de par­ti­lhar seus bens e dons. Isso existe?

Se es­ti­vermos de acordo que isso ainda é um pro­jeto, uma pers­pec­tiva, um sonho, então há que aceitar: o elo per­dido entre o ma­caco e o homem somos nós, essa ca­deia de ma­mí­feros que co­meça com a cu­ri­o­si­dade de Adão e Eva, que foram meter o nariz onde não eram cha­mados, à ge­ração atual con­tem­po­rânea de Biden e Putin! Aliás, dois bons exem­plos da es­pécie pré-hu­mana que tem o rabo preso; onde mete os pés cria uma ba­na­nosa e vive in­va­dindo o es­paço alheio.

Nós somos o elo que an­dava per­dido. No en­tanto, ele sempre es­teve na nossa frente. Basta-nos mirar no es­pelho. O ver­da­dei­ra­mente hu­mano é ainda um projeto de fu­turo. Caso con­trário, o pró­prio elo ha­verá de se romper e o pro­jeto hu­mano que­dará como uma utopia. Talvez re­a­li­zável em algum outro planeta onde haja abun­dância disto que tanto falta por aqui: vida in­te­li­gente.

Ou quem sabe o Cri­ador de­cida passar a limpo sua cri­ação pela se­gunda vez. Du­vido que vá des­truí-la com um novo di­lúvio. A água é, hoje, um bem es­casso. Deus é ge­ne­roso, não per­du­lário. Talvez o aque­ci­mento global seja o pri­meiro in­dício de que tudo ha­verá de virar cinza. Ou, quem sabe, nós mesmos apressaremos o apocalipse desencadeando uma guerra nuclear. Então um novo Gê­nesis terá início.

Des­confio que, no sexto dia, Deus criará ani­mais inaptos a de­sen­volver uma ca­deia evo­lu­tiva. E, no sé­timo, se re­cos­tará em sua rede no Jardim do Éden, porque nin­guém é de ferro, e con­tem­plará a be­leza do Uni­verso – agora livre da ameaça de um pe­ri­goso pre­dador descendente dos ma­cacos, o elo entre o que já não é e o que nunca foi.

“Nossa meta é nossa origem”, a clássica sentença antropológica de Karl Kraus, continua mais atual do que nunca. Para chegarmos a ela, talvez tenhamos de deixar de lado as preocupações com o umbigo de Adão e as certezas do macaco”.(autor Gilberto Cunha) Leia mais: https://www.neipies.com/entre-deus-e-o-macaco/

Autor: Frei Betto

FONTE:https://www.ihu.unisinos.br/628048-o-elo-perdido-artigo-de-frei-betto?fbclid=IwAR1S_1wVLdLabaxSF6votu30GbtoAuLRRtASnxsZCyBpo-uF7n4n-ScYLKM

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