O fundamentalismo e o moralismo religioso: sua inserção no espaço público-estatal

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O Estado não pode se intrometer na vida privada das pessoas, mas deve, por outro lado, garantir que as escolhas pessoais da religiosidade possam ser livremente exercidas, sem a sua intervenção ou de outrem.

Nas democracias contemporâneas, consequentemente, nas sociedades liberais[1], tanto o Estado quanto as demais instituições a ele relacionadas têm um dever prestacional frente a obrigações a ele inerentes, como o atendimento às demandas sociais, que, constitucionalmente, são sua responsabilidade. Portanto, um dever positivo de ação e direção frente ao conjunto da sociedade.

Por outro lado, há um dever de omissão, de afastamento, de não ingerência naqueles assuntos que não envolvem uma obrigação prestacional, mas que estão na esfera da individualidade de cada cidadão. Assim, uma responsabilidade negativa, incluída no rol do que, modernamente, se observa como a liberdade do cidadão frente ao Estado. Liberdades que são de livre exercício do cidadão, considerando a sua independência e liberdade ética pessoal.  

Essa distinção demonstra uma delimitação necessária entre o público e o privado. O espaço púbico[2] é a arena da coletividade política, das relações dos indivíduos ou de grupos com o Estado. E o espaço privado é aquele em que o Estado não deve ter interferência. Pertence ao mundo do indivíduo – na própria condição individual ou de determinado grupo a que pertence ou com quem convive, no âmbito privado. É neste cenário que se encontra a religiosidade.

O exercício de determinada crença religiosa pertence ao campo da vida privada do cidadão, sem qualquer possibilidade de intromissão do Estado. Essa é uma condição necessária e fundamental para o exercício independente e responsável da vida privada das pessoas, algo que fundamenta a ideia de autodeterminação pessoal. É base, inclusive, para a defesa da própria democracia. Pertence, portanto, ao campo da responsabilidade ética pessoal de cada um.

Assim, o Estado, que não pode se intrometer na vida privada das pessoas, deve, por outro lado, garantir que as escolhas pessoais possam ser livremente exercidas, sem a sua intervenção ou de outrem. Não é por outro motivo que, no Brasil, essa condição recebeu proteção constitucional, fazendo parte do rol dos direitos individuais e coletivos, garantidos pelo pacto republicano.

Assim, a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício de cultos e a proteção aos seus locais de exercício, a prestação de assistência religiosa e a garantia de que ninguém será privado de seus direitos por motivos de crença religiosa constam de forma clara como garantia inviolável na Carta de 1988[3].

Entretanto, essa prescrição teórica liberal nem sempre se compatibiliza com a vida cotidiana, principalmente em democracias incipientes, como é a brasileira. Na prática, o Brasil tem em sua história uma profunda confusão entre o público e o privado. Basta ver a relação patrimonialista que uma casta social privilegiada tem mantido com o Estado desde os primórdios da colonização. Atualmente, porém, mais um ingrediente tem sido inserido nessa (con)fusão entre as coisas da vida privada e a coisa pública.

Com a estreita relação entre a igreja e a política, por meio do ingresso de líderes religiosos tanto na política quanto no Estado, principalmente os da atualmente chamada Bancada Evangélica[4], ocorre um fenômeno de desprivatização desse aspecto da vida, ou seja, da religiosidade de cada um.

Há uma espécie de sacralização do que antes era profano (ou profanação do que antes era sagrado), com o ingresso da política nos templos religiosos, cuja cisão poderia ser claramente identificada entre as coisas de Deus, de um lado, e as coisas do mundo, de outro.

A democracia é o melhor de todos os regimes políticos! Essa afirmação, com todas as variações possíveis, é encontrada na argumentação de qualquer um que a defenda. Uma variação, talvez não tão comum, mas importante para a nossa análise, é a de que a democracia promete ser a melhor forma de proporcionar uma vida boa para todos os membros de determinada comunidade política. Leia mais: https://www.neipies.com/a-democracia-no-espelho-como-os-predadores-fragilizam-a-democracia-expondo-a-ao-populismo/

Esta reflexão é parte do livro A democracia no espelho: como os predadores fragilizam a democracia expondo-a ao populismo, lançado em 2022.

Autor: Edson Luís Kosmann


[1] No sentido do liberalismo prescrito por Ronald Dworkin.

[2] Para evitar confusão, utiliza-se, aqui, a terminologia que distingue o espaço público do espaço privado como sendo o primeiro o público-estatal. Ou seja, o espaço público é o que está sob a responsabilidade do Estado. Já por espaço privado entende-se o conceito em seu sentido amplo: desde o espaço privado mais restrito, como a casa das pessoas, como, também, aqueles espaços privados que pode ser frequentado pelo público ou têm acesso ao público. Portanto, não se ignora que há espaços privados que são de uso público, como cinemas, museus, igrejas, shopping centers etc. Contudo, não são espaços públicos-estatais.

[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.  Acesso em: 20 set. 2021.

[4] A Bancada Evangélica foi constituída na Câmara dos Deputados com a principal finalidade de exercer influência moral conservadora nas políticas públicas. Foi denominada de “Frente Parlamentar Evangélica”, e atua como uma sociedade civil de caráter não governamental, com estatuto e regimento interno próprios. BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume, 2009. 

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