O gato não quis descer do trem

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Arrisquei passar a mão na sua cabeça, ele só piscou. Na infância, havia sete gatos na nossa casa, então eu sabia como conseguir a simpatia do meu vizinho. Não alcançaríamos total sintonia. Eu vivia no presente, mas também no passado e no futuro. E ele, com certeza, só no presente. Fomos assim até a próxima estação.

Das seis horas da manhã às seis horas da tarde, as 12 horas no trem faziam com que eu descesse em todas as paradas. Alguns desembarcavam, outros embarcavam, mas quase todos desciam, menos o gato que havia no trem. Talvez fosse eu o único passageiro a fazer todo o trajeto Santa Maria – Passo Fundo e o gato o único a não descer nas inúmeras e pequenas estações.

No trajeto entre duas delas, fui ouvindo os acordes de um gaiteiro. Em uma das breves paradas, consegui comprar uma garrafa de cerveja não muito gelada. Foram 600 ml tomados no bico.

Em outra, um vizinho de banco me aconselhou a não descer, mas eu desci. Ainda bem, assim tenho o que contar.

Na lancheria da minúscula estação, havia algumas mesas de madeira, todas ocupadas. Só consegui comprar rapadura. Tinha cachaça, mas eu sabia que ela era bem mais forte que eu. Fumavam palheiro, a história que conto é antiga mesmo. Tinha dezenove anos e estava viajando para casa. Minha irmã festejava seus quinze anos de idade ou era seu baile de debutante, não me lembro.

Um dos fumantes, um de bigode, levantou-se cambaleando e cutucou com o cabo de um facão outro fumante, este sem bigode e com muita barba por fazer. Os dois saíram da lancheria e todos os seguimos. Pena que o trem apitou.

Pude ver que as bombachas e as botas de ambos eram parecidas. Vi porque baixei o olhar para ver dois facões no chão. O trem começou a se mover. Tive de correr. Da janela não consegui mais vê-los. Não sei se começariam uma dança ou uma luta. Achei que o primeiro a se levantar fazia-se de mais bêbado do que parecia estar. Sabia de uma recomendação: “Se for começar uma luta, se faça de muito bêbado. O adversário vai achar que será fácil”.

Meu vizinho de banco, agora, não era mais aquele que sugerira que eu não descesse. Era o gato, aquele que nunca descia nas estações. Cinza-escuro com manchas brancas, nem gordo nem magro, no peso. Ao me ver, não deu importância. Voltou a deitar a cabeça no banco. Parecia me espiar com seus belos olhos de gato.

Arrisquei passar a mão na sua cabeça, ele só piscou. Na infância, havia sete gatos na nossa casa, então eu sabia como conseguir a simpatia do meu vizinho. Não alcançaríamos total sintonia. Eu vivia no presente, mas também no passado e no futuro. E ele, com certeza, só no presente. Fomos assim até a próxima estação.

Convidei o gato para descer. Não quis. Fiz menção de levá-lo no colo, mesmo assim ele não quis. E isso que era uma tarde de sol, de céu sem nuvens. E não estava muito quente.

Havia ali alguns cavalos pastando. Consegui comprar uma garrafa de cerveja por preço menor que aquele pago pela anterior, tinha um casco para trocar. Não estava gelada, fazer o quê?

Acabei ajudando uma alegre família que ia para um casamento e levava a torta da festa. Depositada sobre um enorme tabuleiro quadrado, a torta não entrava pela porta. Finalmente, com o maquinista já cansado de tanto apitar, conseguimos passá-la por uma janela que abria de todo.

Alcancei meu banco com o trem já em movimento e fui tomando a cerveja no bico.

Com a mão livre, acariciava o gato; com os olhos, via passar pequenas lagoas, algumas ovelhas, casas de madeira sem muita pintura, árvores como cinamomos e outras que eu não sabia o nome. Também vacas que pareciam cochilar enquanto mastigavam.

Tomei toda a cerveja.

O gato dormiu. E eu também.

Autor: Jorge Alberto Salton. Também escreveu e publicou no site “Humana beleza de ser empático”: www.neipies.com/humana-beleza-de-ser-empatico/

Edição: A. R.

1 COMENTÁRIO

  1. Amei a história do gato pois também tenho três em casa e uma paixão imensa pelos bichinhos.

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