O juiz, o traficante e os calhordas

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O tráfico mata, corrompe, abrevia a vida de adolescentes
e vai continuar matando enquanto não admitirem
que o sistema da tal ‘guerra às drogas’ é vencido, é antigo,
é ineficiente, é fracassado e só pega negros e pobres.


O liberal que cheira cocaína e participa de simpósios sobre liberdades quer consumir sua droga, para ficar esperto, mas berra que traficante tem que ser preso e se possível morto.

O liberal cínico ataca, para consumo externo, quem fornece a droga que o mantém inteligente e competitivo com o patrão, com os amigos e com as mulheres.

Pois escrevo esse texto pensando no juiz Ramiro Oliveira Cardoso, que nunca vi. Sei da existência do juiz substituto da 4ª Vara Civil do Foro de Porto Alegre pelas notícias recentes que revelam a indignação de delegados e promotores, porque o juiz solta traficantes com quantidades de drogas que considera irrelevantes.

O juiz não manda prender esses miseráveis varejistas de esquina, invariavelmente jovens e negros, que se matam na disputa pelo mercado de coca e maconha da Grande Porto Alegre. Porque o juiz entende que não adianta prender.

Cardoso disse numa entrevista a Eduardo Matos, de ZH, que a repressão pega um traficante de rua hoje, com a maior facilidade, e quando ele é levado para uma delegacia, outro já o substituiu.

São jovens sem perspectivas, sem proteção do Estado, vulneráveis às tentações do tráfico. Essa gurizada lota as cadeias, onde o esquema de dominação das facções se aperfeiçoa e se reproduz.

O juiz diz: “O crime de tráfico não é um crime natural. Ele é um crime cultural e ele é temporal de determinado entendimento social. Ele não tem uma reprovação imediata, por exemplo, como um homicídio, como um estupro, como um roubo. Ele é um delito que pode ser que em alguns anos nem seja mais criminalizado”.

Agora digo eu: o traficante, principalmente esse da ponta, mesmo que trabalhe para alguém (e trabalha) é uma mão de obra barata de quem está à espera do que ele vende, o cheirador de coca. O traficante mandalete morre para manter seu espaço e seu cliente, sem custos para o cheirador. E o cheirador, principalmente o liberal, esse que defende livre mercado, o que faz o cheirador? O cheirador pede que matem o traficante.

Cheira e pedem que matem. Que esfolem, que acabem com o traficante e suas famílias. E que outros os substituam e também sejam mortos.

O cheirador de coca moralista (muitos são contra o Bolsa Família para as mães de aprendizes de traficantes) é o mais cínico dos consumidores de vícios, incluindo cigarro, álcool, propinas e outras drogas.

O bacana consumidor de droga, dessa classe média movida a estímulos químicos, é um babaca. É para esse bacana e babaca que o juiz fala.

Há pouco, aconteceu uma gritaria parecida, quando uma mãe e dois filhos foram presos por tráfico em Charqueadas. O mundo da tradição, da família e da moral bolsonarista se levantou contra a mulher que usava os filhos para traficar.

E massacraram a mãe. A que vende drogas. Não a mãe que muitas vezes sustenta o drogado bem de dinheiro e fala mal dos traficantes imorais.

A humanidade se encharca de alguma droga desde tempos bíblicos. E vai continuar cheirando, bebendo, fumando. É um mercado ilegal em nome de uma ‘ética’ fracassada, de punições que não funcionam, de vinganças.

O tráfico mata, corrompe, abrevia a vida de adolescentes e vai continuar matando enquanto não admitirem que o sistema da tal ‘guerra às drogas’ é vencido, é antigo, é ineficiente, é fracassado e só pega negros e pobres.

Por isso entendo a posição do juiz que libera pequenos traficantes e desafia o sistema todo a enfrentar seus cinismos e suas demagogias diante do traficante invisível como expressão do que Jessé Souza define como a ralé brasileira.

Calhordas moralistas consumidores de drogas, admitam: o traficante negro, jovem, miserável, sempre trabalhou para vocês sem salário, de graça, sem FGTS, sem férias, sem 13º, e morre por vocês.



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