Ele mostra a mentalidade pela qual se fazem necessárias leis de proteção de minorias: as leis são para protegerem as minorias de serem criminalizadas, exatamente como ele, Ives Gandra, faz em sua frase.
Ives Gandra Martins: ‘Não sou nem negro, nem homossexual, nem índio, nem assaltante, nem guerrilheiro, nem invasor de terras. Como faço para viver no Brasil nos dias atuais?’
(Blog do jornal Estadão).
Essa frase não poderia jamais ser pronunciada por uma pessoa escolarizada, muito menos por um jurista. Para além do problema de perversidade moral, que já seria suficiente para invalidar para sempre a autoridade de qualquer um, ela contém um erro intelectual, um pecado primário de não compreensão do que é uma minoria. Os dois erros estão imbrincados um no outro, e se confirmam no texto e contexto da frase.
Ives Gandra não sabe o que é uma minoria. Ele imagina que minoria é um grupo de pessoas formadas aleatoriamente, ou por traços comuns que ele inventa. Ofensivamente ele agrupa minorias étnicas junto com o que nada tem a ver com minorias, que são “assaltantes”.
Ora, gays, índios e negros são postos na mesma fileira de assaltantes! Não é um simples erro ou descuido de linguagem. Desse modo, ele mostra a mentalidade pela qual se fazem necessárias as leis de proteção de minorias: as leis são para protegerem as minorias de serem criminalizadas, exatamente como ele, Ives Gandra, faz em sua frase. Além disso, ele coloca junto de minorias étnicas e de práticas identitárias – gays, negros e índios – os “invasores de terra”, que não são nem minoria e muito menos aprioristicamente criminosos. Trata-se aí de reconhecido movimento popular, com existência legal, o MST.
Mais uma vez a confusão mental de Ives Gandra torna-se evidente: minoria é uma coisa e assaltante é outra; e invasor de terras é uma terceira coisa. E guerrilheiro? De onde ele tirou isso? Onde ele está vendo guerrilheiro no Brasil? Ele está se referindo ao Zé Dirceu (num suposto passado?), aquele condenado do “mensalão” que ele mesmo, Ives Gandra, falou que havia sido “condenado sem provas”? Aliás, estranha fala aquela! Muito estranha! (o que ele queria? desafiar os juristas que condenaram Zé Dirceu?)
Caso eu fosse pertencente a qualquer grupo desses realmente minoritários – gays, negros e índios – eu não deixaria de interpelar o jurista nos termos da lei. Aliás, se houver denúncias suficientes, a Procuradoria do estado de São Paulo pode interpelá-lo. Não é possível que um professor de direito do Mackenzie, alguém que já foi até cotado para ministro do STF, exiba esse comportamento a la Waack.
Ele deveria ser o primeiro a conhecer as leis e, por causa disso, já saber de antemão o conceito sociológico de minoria, e saber também que o que falou é ofensivo.
“Minoria” não corresponde a um grupo de “menor número”. “Minoria” não é alguma coisa exterior ao conceito geral de Direitos Humanos. Essas coisas estão ligadas. Minoria sociológica se define por um tipo de “cultura própria”, pode ser por práticas étnicas, linguísticas, religiosas, sexuais etc.
A proteção das minorias se fez presente na democracia liberal principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando a confirmação de genocídios (judeus, negros, pessoas com problemas físicos, gays, ciganos etc.) por parte dos nazistas veio à tona no Tribunal de Nuremberg. Daí para diante, os Direitos Humanos passaram a se aliar à ideia de que o estado precisa ser policiado, pois ele pode destruir não só o indivíduo, mas todo um grupo de pessoas afinadas culturalmente. Daí para diante, a noção de minoria foi se aprimorando no âmbito da sociologia e do direito. Notou-se bem, então, minorias definidas interna e externamente, positiva e negativamente. As leis de proteção de minorias que, no Brasil, ao contrário do que diz Gandra, são bem poucas (homofobia no Brasil ainda não crime!), vieram a ser demandadas nas democracias liberais do mundo todo.
Uma minoria definida positivamente são a dos alemães no Brasil, ou dos japoneses. Há um reconhecimento de grupos culturais afinados com a cultura alemã e com a cultura japonesa, e o número de virtudes atribuídas a tais comunidades, no âmbito da conversação hegemônica no Brasil, é bem maior do que o número de asserções negativas. Mas não é o mesmo caso para negros ou indígenas. Também não é o mesmo caso para com gays.
Na situação de negros, gays e indígenas (em certo sentido há ainda “as mulheres”), o reconhecimento de que são minorias, para seus próprios membros, se faz por conta do impacto da linguagem pejorativa contra eles, ou mesmo a violência e a discriminação contra eles. O pertencente a tais minorias descobre-se como membro delas por decisão exterior e pejorativa. Nasce sujo para o mundo! A cultura o interpela para lhe dizer que ele não pertence a nenhuma cultura, mas sim ao que não é humano. O seu próprio corpo é o que denota isso, e ele só percebe seu próprio corpo, seu eu corporificado, por causa da existência do apontar ofensivamente do Outro.
Nesse segundo caso, a minoria, ao ser organizar, pode gerar comportamentos fascistas. Pode agir contra a cultura hegemônica de modo a reproduzir práticas xenófobas, aquelas que se fizeram sentir contra elas. Mas a minoria, não raro, logo faz brotar internamente lideranças que percebem esse erro, e se desvia do comportamento meramente magoado para, então, alcançar as práticas de orgulho próprio, de valorização, de combate inteligente ao preconceito etc. Os movimentos gay, negro e indígena no Brasil têm aprendido a agir assim. Mas, em termos de conquistas da lei, estão completamente distantes de terem as facilidades que Ives Gandra afirma que ele, branco-macho-rico-professor-jurista, também não tem.
Ou seja, no limite, Ives Gandra acha que não se está obedecendo a Constituição por tentarmos fazer leis de proteção de minorias ou de contrabalanço. Ele não entendeu ainda que a lei de filiação de nossa Constituição, internacionalmente, é a Carta de Direitos Humanos. Leis e vantagens para grupos que estão aquém da linha de partida da corrida social não são criação de vantagens, são possibilidades de igualdade perante a lei no final da corrida.
Poderíamos dizer que Ives Gandra não fez Sociologia I na faculdade, ou que quando fez a mentalidade conservadora era muito forte, mas o fato dele não ter reaprendido conceitos e, enfim, o fato dele não ter sensibilidade para as mudanças de vocabulário de nossas épocas, é muito significativo de uma mentalidade empedrada.
Uma pessoa assim está completamente desqualificada para a vida fora da companhia de Waack. Precisa procurar seus pares. Sua declaração não cabe. Nem do ponto de vista conceitual nem do ponto de vista da sensibilidade de um professor e jurista.
Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC-SP. Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós-doutor em Medicina Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Professor ativo no exterior e no Brasil. Publica regularmente importantes reflexões em seu site: http://ghiraldelli.pro.br/